George Monbiot resenha seu livro "Feral: searching for enchantment on the frontiers of rewilding" (publicação de Allen Lane) para a Revista Prospect; junho de 2013.
A colheita não tinha ido bem. Esperávamos encontrar urtigas, botões de espinheiro, talvez alguns cogumelos de primavera. Mas era um março frio e quase nada tinha ainda brotado. Eu empurrei uma teia de ramos e vi ao lado de um pequeno riacho um muntjac morto, um dos cervos de origem chinesa que proliferaram na Grã-Bretanha depois de liberados pelo Duque de Bedford no início do século 20. Seus olhos ainda estavam brilhantes e o corpo quente. Não havia nenhuma ferida ou traço de sangue.
Hesitei por um momento examinando seu corpo estreito, os pequenos chifres coralinos, as presas salientes de seu lábio superior, os pequenos cascos. Então juntei seus tornozelos e levantei-o sobre os ombros. O corpo do cervo enrolou-se no meu pescoço como se tivesse sido feito sob medida, com seu peso descansando perfeitamente sobre minhas articulações. Assim que senti seu calor fui dominado por uma sensação crua, feral, pungente, nunca experimentada antes. Minha pele ficou corada, meus pulmões cheios de ar. Eu queria rugir e ressoar o tambor de meu peito.
Experimentei uma onda de emoção semelhante quinze anos mais tarde, enquanto pescava linguados em um estuário no País de Gales alguns verões atrás. Eu estava vadeando em águas rasas com um arpão nas mãos enquanto a maré subia, esperando pegar os peixes em seu caminho de volta para o mar. Enquanto seguia pelo canal, com o arpão preparado acima da linha d’água e tentando detectar o mínimo sinal de peixe enterrado na areia, minha concentração se intensificou até que me senti flexionado e focado como uma garça.
É difícil explicar o que aconteceu depois, mas de repente fui transportado pela ideia de já ter feito isto antes. Não acredito em reencarnação ou na persistência de uma alma após a morte do corpo. No entanto, naquele momento estava certo de ter feito aquilo mil vezes, certo de conhecer aquele trabalho, tanto quanto a certeza de conhecer o caminho de casa.
Essas experiências foram emocionantes e apavorantes. As sensações foram tão poderosas e estranhas que não pude nem menosprezá-las nem assimilá-las. Os dois eventos me deixaram com um profundo sentimento de insatisfação: senti que tive um vislumbre de algo rico, grandioso e emocionante, do qual tinha sido excluído.
Acredito que em ambos os casos me deparei com alguma capacidade não exercitada: um equipamento psicológico que já foi inestimável, mas que agora é vestigial. Ao longo da maior parte da existência humana, enquanto ainda estávamos sujeitos às poderosas forças seletivas, fomos moldados por imperativos como de nos alimentar, defender, abrigar, retribuir, trabalhar em conjunto, procriar e cuidar de nossos filhos, que levaram certos conjuntos de comportamento a tornarem-se instintivos. Como um comportamento inato pode fazer um idoso pular um muro de um metro e meio antes que um caminhão vare em sua direção, estes comportamentos evoluíram para nos guiar ao lado dos processos mais lentos da mente consciente.
Evoluímos em circunstâncias difíceis. Na África competimos não só com a megafauna atual, mas também com o tigre de dentes de sabre e falsos gatos de dente de sabre como os extintos nimravidae e dinofelis, dos quais uma espécie pode ter se especializado em caçar hominídeos (uma ideia de Bruce Chatwin explorada em The Songlines). Quando os seres humanos modernos chegaram pela primeira vez na Europa, encontraram um ecossistema dominado por leões, hienas e ursos das cavernas, por elefantes e rinocerontes e monstruosos gatos de cimitarra que caçavam esses animais. A Rússia e a Europa Oriental eram assombradas por dois grandes animais, o elasmotherium sibiricum e o elasmotherium caucasicum, rinocerontes do tamanho de elefantes, com dois metros e meio até a crista, pesando talvez cinco toneladas.
Fomos aliviados de nossos pesadelos em muitas partes do mundo. Nossos ecossistemas são hoje fantasmas, com espécies adaptadas a desafios que não existem mais. O antílope pronghorn da América do Norte, por exemplo, pode correr a 70 quilômetros por hora, porque já foi caçado pela chita americana agora extinta. A maioria das árvores de folha caduca europeias pode rebrotar a partir de qualquer ponto em que seu tronco quebre, e pode suportar o tipo de punição extrema sofrida quando suas folhas vão ao chão. Por quê? Porque evoluíram entre elefantes. Da mesma forma, nós possuímos uma psique fantasma: um conjunto de adaptações comportamentais e emocionais para um mundo perigoso, que uma vez nos ajudou a caçar e a evitar sermos caçados.
Mesmo quando estamos apenas vagamente conscientes dessas adaptações, a nossa psique fantasma ainda nos assombra. Os contos heroicos que temos preservado, como as histórias do herói grego Ulysses, do marujo Sinbad, do nórdico Sigurd, do inglês Beowulf, do irlandês Cú Chulainn, do santo guerreiro São Jorge, do indiano Arjuna, do vietnamita Lac Long Quan ou de do herói Glooskap da Nova Inglaterra e do leste do Canadá, ressoam com nossa história evolutiva. Em games, romances de fantasia e filmes de ficção científica, as sagas de antigas batalhas contra monstros perdidos mantêm sua forma essencial. A ausência de desafios ancestrais nos obriga a sublimar e transliterar, inventar missões e perigos, para buscar uma fuga do que percebemos como tédio ecológico. Às vezes, essa sublimação parece insuficiente.
Senti isso fortemente enquanto trabalhava na África Oriental. Ao longo de seis meses segui o destino de uma comunidade Masai no sul do Quênia que estava sendo dilacerada por roubo e expulsão de suas terras ancestrais. Fiz amizade com um jovem chamado Toronkei e me vi fascinado pela sua extraordinária ousadia que, entre a última geração de guerreiros graduados, era considerada comum. Os Masai atacavam de surpresa o gado dos Kikuyu escapando às vezes sob uma saraivada de balas, levavam touros ao chão com nada mais que as mãos e caçavam leões com lanças. Um dia, quando fui visitá-lo encontrei uma mulher desconhecida em sua casa. "Esta", ele me disse: "é a minha esposa." (1)
Três dias antes, ele havia andado 30 milhas para visitar um amigo. Quando se aproximava de sua aldeia, conheceu a garota andando na trilha e imediatamente mudou seus planos e conseguiu convencê-la a fugirem juntos ao anoitecer. Eles esperaram até que todos na aldeia estivessem dormindo e, então, saíram da sede e correram. Agora, os dois pais furiosos estavam negociando um preço para a noiva.
Quando ele me contou isso, senti, e não pela primeira vez na nossa amizade, um espasmo de inveja. Enquanto fiquei sentado em sua cabana saudando a procissão de jovens que vieram prestar suas homenagens a ele, fiquei impressionado por um pensamento tão claro e ressonante como se um sino tivesse tocado ao lado do meu ouvido: se a mim, ainda como embrião, fosse dado escolher entre a minha vida e a dele - sabendo que a despeito da particular escolha me adaptaria à situação e ficaria confortável dentro dela - teria escolhido a dele. Ao lado de sua ousadia, seu oportunismo e sua espontaneidade, a minha parecia uma pequena e embaralhada existência.
Os primeiros contatos entre europeus e nativos americanos foram caracterizados por espoliação, opressão e massacre, mas em alguns lugares houve períodos de engajamento amigável. Nativos americanos, por vezes, tiveram a oportunidade de participar de assentamentos europeus de igual para igual, e em muitos casos europeus foram capazes de participar de comunidades nativas americanas na mesma base. Isto poderia ser visto como um experimento social, cujo propósito seria determinar qual vida as pessoas preferem levar. Não haveria dúvida quanto ao resultado.
Em 1753 Benjamin Franklin fez a seguinte reclamação: “Quando uma criança indígena criada entre nós, que aprendeu nossa língua e se habituou a nossos costumes, vai visitar os seus e com eles fazer um giro, não há argumento capaz de fazê-la voltar... [Mas] quando pessoas brancas jovens de ambos os sexos são feitas prisioneiras pelos índios, vivem um tempo entre eles e então são resgatadas por seus amigos, mesmo quando tratadas com toda a ternura que se possa imaginar para que fiquem entre os Ingleses, em pouco tempo tornam-se desgostosas com o nosso modo de vida e os cuidados e dores necessários para mantê-lo, de sorte que aproveitam a primeira boa oportunidade e escapam novamente para as florestas, de onde não voltam".(2)
Em 1785, Hector de Crèvecoeur comentou sobre o que aconteceu quando os pais de crianças europeias vieram buscar as que tinham sido sequestrados por nativos americanos: "Aqueles cujas idades mais avançadas lhes permitiam recordar seus pais e mães, absolutamente recusaram-se a segui-los, e correram para seus pais adotivos buscando proteção contra as efusões de amor que seus pais verdadeiros e infelizes sobre eles derramavam!... As razões que me deram muito o surpreenderiam: a liberdade mais perfeita, a vontade de viver, a ausência daqueles cuidados e solicitudes corrosivas que tantas vezes prevalecem entre nós... milhares de europeus tornaram-se indígenas, e não temos exemplo de sequer um indígena ter escolhido tornar-se europeu! "(3)
Pessoas de ambas as comunidades puderam escolher entre a relativamente segura, mas confinada, assentada e regulada vida dos europeus, e a vida móvel, livre e incerta dos nativos americanos. Em todos os casos, nos dizem Crèvecoeur e Franklin, os europeus optaram por ficar com os nativos americanos e os nativos americanos voltaram, na primeira oportunidade, para suas próprias comunidades. Isso diz mais do que é confortável saber sobre nossas próprias vidas.
Desde o século 18 nossas vidas tornaram-se ainda mais domesticadas e definidas. O maior desafio físico que a maioria de nós enfrenta é o de abrir uma embalagem mal desenhada de alimento. Temos uma segurança privilegiada que foi ganha, em grande parte, por tentativa e erro e muitas perdas. Os meus dois breves vislumbres de vida “selvagem”, e a profundidade notável de sensações que invocaram, sugerem-me que a perda é maior do que sabemos.
Em The suburbs dream of violence, J. G. Ballard escreveu "Dormindo em suas casas modorrentas, protegidos por shoppings benevolentes, eles esperam pacientemente pelos pesadelos que os acordarão para um mundo mais apaixonado" (4).
Na peça Jerusalem de J. Butterworth, Johnny Byron é o último dos moicanos. Sensual, irresponsável, promíscuo e livre, ele é um carismático, mas ignóbil e selvagem que vive em uma casa móvel na floresta. "Tome seu estofo" Byron nos diz, "ninguém jamais foi levado ao túmulo desejando ter amado uma mulher a menos. Não dê ouvidos a ninguém e a nada além do que diz seu coração. Minta. Trapaceie. Roube. Lute até a morte".
Por viver este credo, Byron sofre a maldição do funcionalismo e a praga dos arrumadinhos, das pessoas sedentárias que odeiam e invejam o traficante de drogas lutador, sedutor, audacioso, contador de histórias, ímã de jovens descontentes, sarnento, encharcado de mijo, príncipe bêbado da folia, mestre da última caçada selvagem. Johnny Byron responde a uma necessidade expressa pelos jovens que a ele se juntam, mas é uma necessidade que a sociedade não pode acomodar. A tragédia central da peça é não haver mais lugar para ele. Seja por ansiarmos pela vida que leva, seja pelo empobrecimento que nos trás a morte crua do espírito que o move, ele é grande demais para as restrições sob as quais temos o dever moral de viver. O exercício destas faculdades negligenciadas, a peça nos lembra, é um convite ao desastre social. Cientes das necessidades e direitos dos outros e das proibições e decências que a eles devemos, nos encontramos cercados: não importa em que direção você lançar seu punho, certamente o nariz de alguém estará no caminho.
Existem movimentos sociais poderosos e crescentes que se recusam a aceitar estas limitações e se rebelam contra impostos, leis de segurança e saúde, regulamentação de negócios, restrições ao tabagismo, ao excesso de velocidade e às armas e, sobretudo, contra os limites ambientais. Insistem em poder balançar os punhos independentemente do nariz que estará no caminho, quase como se isto fosse um direito humano.
Eu não tenho nenhum desejo de me juntar a essas pessoas. Aceito a necessidade de paciência. Mas me parece cada vez mais difícil continuar a viver desta forma. Às vezes me sinto arranhando as paredes desta vida à procura de um caminho para um espaço mais amplo mais além, e tenho certeza que não sou o único. Será possível satisfazer esse desejo atávico de aventura, liberdade e um pouco de violência sem abandonar a cortesia necessária em um planeta lotado?
Talvez em um aspecto. Na Europa e na América do Norte está ocorrendo um abandono em massa das terras menos férteis. Uma estimativa sugere que dois terços das áreas dos Estados Unidos que tiveram suas florestas derrubadas no passado voltaram a se transformar em áreas florestais com o recuo da agricultura e da exploração madeireira, especialmente na metade leste do país. Outra propõe que em 2030, mesmo sem qualquer mudança no regime de subsídios, os agricultores do Continente Europeu terão desocupado cerca de 30 milhões de hectares que usavam no ano 2000 (5), uma área quase do tamanho da Polônia. Os jovens não querem mais se ligar à terra e os mercados globais tornam não competitivo o cultivo de solos pobres.
Acidentalmente, e em alguns lugares deliberadamente, está ocorrendo uma volta do ambiente selvagem em larga escala. Florestas e áreas húmidas estão voltando e os grandes animais selvagens estão novamente se espalhando em ambos os continentes. O número de ursos marrons na Europa mais do que duplicou desde 1970 (6). Nos últimos 20 anos, os lobos ocuparam a França e a Alemanha, e sua população está aumentando rapidamente em todo o Continente. Em 2011, pela primeira vez em mais de um século, um lobo apareceu na Bélgica e na Holanda. Em 1927 havia somente 54 bisões europeus remanescentes na Terra, todos eles em zoológicos. Agora, existem 3.000 vivendo na natureza ou de modo semiselvagem em pelo menos sete países.
Ao encontrar um bisão num caminho da floresta polonesa de Bialowieza, errando em região onde agora também vagam lobos e ursos, senti algo forte, não exatamente igual às duas explosões de emoção que tive, mas não muito distante. Embora na realidade eles não apresentem perigo para as pessoas, a presença de lobos, em particular, faz-nos sentir como se uma sombra ligeira nos atravessasse entre a sístole e a diástole.
Eu vejo esta volta da natureza selvagem em larga escala como algo que devemos acolher e incentivar, não só pela reversão da destruição do mundo natural que ela representa, e que ocorre em quase todos os outros lugares (7), mas também porque isto tem o potencial de recarregar nossas vidas de aventura e surpresa. Eu gostaria de ver a reintrodução na natureza não só de lobos, linces, carcajus, bisões, javalis e alces, mas também e se quisermos, de seres humanos. Em outras palavras, a volta da natureza selvagem pode permitir-nos invocar fantasmas não exorcizados do passado, liberar nossas emoções vestigiais e desfrutar de seus prazeres atávicos, tudo sem abandonar os nossos empregos, confortos ou mesmo as restrições necessárias da civilização.
NOTAS:
1. George Monbiot, 1994. No Man’s Land: an investigative journey through Kenya and Tanzania. Macmillan, London.
2. Benjamin Franklin, 9th May 1753. The Support of the Poor. Letter to Peter Collinson. http://www.historycarper.com/resources/twobf2/letter18.htm
3. J. Hector St. John de Crèvecoeur, 1785. Letters from an American Farmer and Other Essays. Letter 12. Edited by Dennis D. Moore. Harvard University Press.
4. JG Ballard, 2006. Kingdom Come. Fourth Estate, London.
5. The Institute for European Environmental Policy, cited by Rewilding Europe, 2012. Making Europe a Wilder Place. http://www.rewildingeurope.com/assets/uploads/Downloads/Rewilding-Europe-Brochure-2012.pdf
6. Rewilding Europe, 2012. Making Europe a Wilder Place. http://www.rewildingeurope.com/assets/uploads/Downloads/Rewilding-Europe-Brochure-2012.pdf
7. Nota do tradutor: embora George Mombiot diga que a natureza selvagem está se recompondo em “... quase todos os outros lugares”, deve estar mesmo se referindo a demais lugares da Europa e dos EUA, já que no Brasil e em outros países exportadores de commodities agrícolas o que se passa é exatamente o contrário do descrito por Monbiot neste livro.
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