quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Como a ciência está nos convocando à revolta



(O artigo é da Naomi Klein (No Logo) publicado no New Statesman em 29/10/2013. Eu traduzi. A foto é do Mario Schemberg. Os físicos vão saber porque foi adicionada aqui. Se estivesse vivo estaria nas ruas.)

Em dezembro de 2012 o pesquisador de sistemas complexos Brad Werner, de cabelos rosa, fez o seu caminho através da multidão de 24 mil cientistas da Terra e do Espaço no Encontro de Outono da União Geofísica Americana, realizado anualmente em San Francisco. A conferência daquele ano tinha participantes de renome como Ed Pedra, do projeto Voyager (Nasa), expondo um novo marco no caminho ao espaço interestelar, e o cineasta James Cameron, discutindo suas aventuras em submersíveis de profundidade.

Mas era a sessão de Werner que estava criando barulho; era intitulada “A Terra está F***da?” (Is Earth F**ked? Dynamical Futility of Global Environmental Management and Possibilities for Sustainability via Direct Action Activism).

Em pé na frente da sala de conferência, o geofísico da Universidade da Califórnia em San Diego guiou a multidão através do modelo computacional avançado que usara para responder à pergunta. Falou das fronteiras do sistema, de perturbações, dissipação, atratores, bifurcações e um monte de coisas em grande parte incompreensíveis para aqueles de nós não iniciados na teoria de sistemas complexos. Mas o resultado foi claro o suficiente: o capitalismo global fez da depleção de recursos algo tão rápido, prático, conveniente e sem barreiras que os “sistemas Terra-Humanidade” estão se tornando perigosamente instáveis. Ao ser pressionado por um jornalista por uma resposta clara sobre “estarmos f***dos?”, Werner deixou o jargão de lado e respondeu: “Mais ou menos”.

Há uma dinâmica no modelo, no entanto, que oferece alguma esperança. Werner classificou-a de “resistência”: movimentos de “pessoas ou grupos de pessoas” que “adotam um determinado conjunto de dinâmicas que não cabem dentro da cultura capitalista”. De acordo com o resumo de sua apresentação, isso inclui “ação direta ambiental e a resistência a partir de fora da cultura dominante, como em protestos, bloqueios e sabotagens por povos indígenas, operários, anarquistas e outros grupos ativistas”.

Reuniões científicas sérias geralmente não incluem chamadas das massas à resistência política e, muito menos, à ação direta e à sabotagem. Mas Werner não exatamente clamava por isto. Ele apenas observava que levantes massivos – como o abolicionista, o movimento pelos direitos civis ou o Occupy Wall Street – são a mais provável força de atrito capaz de desacelerar a máquina econômica que está fora de controle. Sabemos que os movimentos sociais do passado “tiveram enorme influência sobre... como a cultura dominante evoluiu”, ressaltou. Então, é lógico que, “se nós estamos pensando sobre o futuro da Terra, e o futuro de nossa união com o meio ambiente, temos que incluir a resistência como parte dessa dinâmica”. E isso, Werner argumentou, não é uma questão de opinião, mas “realmente um problema de geofísica”.

Muitos cientistas têm sido motivados pelos resultados de suas pesquisas a agir nas ruas. Físicos, astrônomos, médicos e biólogos têm estado na vanguarda dos movimentos contra armas e energia nuclear, guerra, contaminação química e criacionismo. E em novembro de 2012, a Nature publicou um comentário do financista e filantropo ambiental Jeremy Grantham incitando cientistas a aderirem a esta tradição e “serem presos se for necessário”, porque a crise climática “não é apenas a crise das suas vidas – é também a crise de existência da nossa espécie”.

Alguns cientistas não necessitam convencimento. O padrinho da ciência do clima moderna, James Hansen, é um ativista formidável, tendo sido preso meia dúzia de vezes por permanecer no topo de montanhas de carvão resistindo à remoção ou em frente à construção de gasodutos de gás de xisto (ele deixou seu trabalho na Nasa este ano, em parte, para ter mais tempo para o ativismo). Dois anos atrás, um dos 166 que foram algemados no lado de fora da Casa Branca em uma manifestação contra o gasoduto Keystone XL, foi o glaciologista Jason Box, um especialista de renome mundial no derretimento do gelo que recobre a Groenlândia. “Eu não conseguiria manter minha autoestima se não fosse”, disse Box na ocasião, acrescentando que “só votar não parece ser o suficiente neste caso. Preciso ser um cidadão também”.

Isso é louvável, mas o que Werner está fazendo com sua modelagem é diferente. Ele não está dizendo que sua pesquisa o levou a tomar medidas para parar uma determinada política, mas que sua pesquisa mostra que todo o nosso paradigma econômico é uma ameaça à estabilidade ecológica. E, de fato, que desafiar este paradigma econômico – por meio de movimentos de massa e de contrapressão – é o melhor que a humanidade pode fazer para evitar a catástrofe.

Isso é pesado. Mas ele não está sozinho. Werner faz parte de um grupo pequeno, mas cada vez mais influente, de cientistas cujas pesquisas sobre a desestabilização dos sistemas naturais – particularmente do sistema climático – os está levando a conclusões igualmente transformadoras, revolucionárias até. E para qualquer revolucionário que ainda não saiu do armário e que jamais sonhou em derrubar a atual ordem econômica em favor de outra um pouco menos propensa a levar aposentados italianos a acorrentarem-se em suas casas para evitar perde-las, este trabalho deve ser de particular interesse. Porque ele faz com que a transformação deste sistema cruel em favor de algo novo (e talvez, com muito trabalho, melhor) não é mais uma questão de preferência ideológica, mas sim uma necessidade existencial da espécie.

Uma liderança deste grupo de novos cientistas revolucionários é Kevin Anderson, um dos principais especialistas em clima da Grã-Bretanha e vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Research, grupo que rapidamente se estabeleceu como uma das principais instituições de pesquisa climática do Reino Unido. Dirigindo-se a todos, do Department for International Development à Câmara Municipal de Manchester, Anderson passou mais de uma década pacientemente traduzindo as implicações da ciência climática para políticos, economistas e ativistas. Em linguagem clara e compreensível, ele estabeleceu um rigoroso mapa do caminho para a redução de emissões, que fornece uma possibilidade decente para a manutenção da elevação da temperatura global em menos de 2°C, uma meta definida pela maioria dos governos do mundo para que seja evitada uma catástrofe climática.

Mas nos últimos anos os trabalhos e palestras de Anderson tornaram-se mais alarmantes. Sob títulos como “Mudanças climáticas: indo além do perigoso... números brutais e tênue esperança” ele afirma que as chances de permanecermos dentro de níveis de temperatura seguros estão diminuindo rapidamente.

Com sua colega Alice Arcos, uma especialista em mitigação das mudanças climáticas do Centro Tyndall, Anderson mostra que perdemos tanto tempo com protelações e políticas climáticas frágeis – enquanto o consumo global (e as emissões) inflavam – que estamos agora frente à necessidade de cortes tão drásticos que chegam a desafiar a lógica econômica de priorização do crescimento do PIB acima de tudo.

Anderson e Bows informam-nos que a meta de mitigação frequentemente citada para o longo prazo – corte de 80% das emissões de 1990 até 2050 – foi selecionada puramente por razões de conveniência política e "não tem base científica". Isso porque os impactos do clima não vêm apenas do que emitimos hoje e amanhã, mas das emissões cumulativas que permanecem na atmosfera ao longo do tempo. Eles alertam que, ao perseguirmos metas para três décadas e meia– e não o que podemos fazer para reduzir brusca e imediatamente as emissões de carbono – corremos sério risco de permitir contínuos aumentos de emissões nos próximos anos e de consumir fatia grande demais do nosso “orçamento de carbono de 2°C”, colocando-nos, assim, em uma posição impossível no final do século.

É por isso que Anderson e Bows argumentam que, se os governos dos países desenvolvidos quiserem seriamente alcançar a meta já acordada de manutenção do aquecimento global abaixo dos 2°C, e se é para respeitar alguma equidade nas reduções de emissão (basicamente: que os países que têm vomitado carbono durante a maior parte dos últimos dois séculos cortem antes dos países que ainda têm mais de um bilhão de pessoas sem energia elétrica), então as reduções precisam ser muito mais profundas, e precisam vir muito mais cedo.

Mesmo para termos 50% de chance de permanecermos dentro dos 2°C de aquecimento (temperatura que já envolve enfrentar uma série de impactos climáticos extremamente prejudiciais), os países industrializados precisam começar a cortar suas emissões de gases de efeito estufa em algo parecido a 10% ao ano – e precisam começar agora. Mas Anderson e Bows vão mais longe, apontando que este objetivo não pode ser satisfeito com a variedade de ações como a colocação de uma taxa modesta sobre o carbono emitido ou adoção das tecnologias verdes geralmente defendidas por grandes grupos ambientais. Estas medidas ajudarão, com certeza, mas simplesmente não serão suficientes: a queda de 10% nas emissões, ano após ano, é praticamente sem precedentes desde que começamos a alimentar as nossas economias com carvão. Na verdade, cortes acima de 1% ao ano “têm sido historicamente associados à recessão econômica ou à agitação”, como afirmou o economista Nicholas Stern em seu relatório de 2006 para o governo britânico.

Mesmo no período que se seguiu ao colapso da União Soviética reduções de emissões desta monta e duração não aconteceram (os países ex-soviéticos experimentaram reduções médias anuais de cerca de 5% ao longo de um período de dez anos). Também não aconteceram depois da queda de Wall Street de 2008 (países ricos experimentaram uma queda de 7% em suas emissões de CO2 entre 2008 e 2009, mas estas recuperaram-se com entusiasmo em 2010, enquanto as emissões na China e Índia continuaram a subir). Foi só no rescaldo do grande crash de 1929 que os EUA viram quedas de emissão durante vários anos consecutivos em mais de 10% ao ano, de acordo com dados históricos do Carbon Dioxide Information Analysis Centre. Mas esta foi a pior crise econômica dos tempos modernos.

Se quisermos evitar esse tipo de carnificina e atender às metas de emissões baseadas na ciência, a redução de carbono deve ser administrada cuidadosamente através do que Anderson e Bows descrevem como “estratégias de decrescimento radicais e imediatas nos EUA, na UE e em outros países ricos”. O que é aceitável, só que temos um sistema econômico que faz do crescimento do PIB um fetiche independente de consequências humanas ou ecológicas, e no qual uma classe política neoliberal abdicou absolutamente da sua responsabilidade em gerir qualquer coisa (já que o mercado é o gênio invisível ao qual tudo deve ser confiado).

Então, o que Anderson e Bows realmente estão dizendo é que ainda há tempo para evitar um aquecimento catastrófico, mas não dentro das regras do capitalismo como estas estão atualmente construídas. O que pode ser o melhor argumento que já tivemos para mudar estas regras.

Em um ensaio de 2012 publicado na influente revista científica Nature Climate Change, Anderson e Bows fizeram um tipo de desafio e acusaram muitos de seus colegas cientistas de não apresentarem honestamente o tipo de mudança que as mudanças climáticas demandam da humanidade. Por isso vale a pena citar a dupla extensamente:

“... no desenvolvimento de cenários de emissões os cientistas, repetida e severamente, subestimam as implicações de suas análises. Quando se fala de evitar um aumento de 2°C, “impossível” é traduzido para “difícil, mas factível”, enquanto que “urgente e radical” aparece como “desafiador” – tudo para apaziguar o deus da economia (ou, mais precisamente, das finanças). Por exemplo, para evitar a ultrapassagem de taxas máximas de redução de emissões ditadas por economistas, picos iniciais impossíveis de redução nas emissões são assumidos, juntamente com noções ingênuas sobre “grande engenharia” e taxas de implantação de infraestrutura de baixo carbono. E mais perturbador, como os orçamentos de emissão diminuem, mais e mais geoengenharia é proposta de modo a garantir que o ditado pelos economistas continue inquestionado. Em outras palavras, a fim de parecer razoável dentro dos círculos econômicos neoliberais, os cientistas foram dramaticamente atenuando as implicações de suas pesquisas. Em agosto de 2013, Anderson estava disposto a ser ainda mais contundente, escrevendo que não havia mais como navegar o barco na mudança gradual. “Talvez no momento da Cúpula da Terra em 1992, ou mesmo na virada do milênio, os níveis de mitigação exigidos para os 2°C de aquecimento máximo poderiam ter sido alcançados por meio de mudanças evolutivas significativas dentro da hegemonia política e econômica. Mas a mudança climática é uma questão cumulativa! Agora, em 2013, nós das nações (pós-) industrializadas de alta emissão enfrentamos uma perspectiva muito diferente. Nossa contínua e coletiva libertinagem com o carbono desperdiçou toda e qualquer oportunidade de “mudança evolutiva” que tenha sido oferecida pelo inicial e maior orçamento de carbono de 2°C que tínhamos. Hoje, após duas décadas de blefes e mentiras, o que nos resta de orçamento de carbono para os 2°C requer mudança revolucionária da hegemonia política e econômica”.

Nós não deveríamos estar surpresos por alguns cientistas climáticos estarem um pouco assustados com as implicações radicais da sua própria investigação. A maioria deles foi discretamente fazendo seu trabalho medindo amostras de gelo, rodando modelos climáticos globais e estudando a acidificação do oceano, apenas para descobrir, como o especialista em clima australiano Clive Hamilton diz, que “foram desestabilizar involuntariamente a ordem política e social”.

Mas há muitas pessoas que estão bem conscientes da natureza revolucionária da ciência do clima. É por isso que alguns dos governos que decidiram enterrar seus compromissos climáticos em favor de desenterrar mais carbono tiveram que encontrar maneiras cada vez mais brutais para silenciar e intimidar os cientistas de suas nações. Na Grã-Bretanha, esta estratégia está se tornando mais evidente com Ian Boyd, o conselheiro científico chefe do Departamento de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais, escrevendo recentemente que os cientistas devem evitar “sugerir que políticas públicas são certas ou erradas” e devem expressar suas opiniões “trabalhando com assessores de governo, e sendo a voz da razão, em vez de dissidência, na arena pública”.

Se você quer saber onde isso leva, confira o que está acontecendo no Canadá, onde moro. O governo conservador de Stephen Harper tem feito um trabalho tão eficaz no sentido de silenciar cientistas e fechar projetos de pesquisa importantes que, em julho de 2012, alguns milhares de cientistas e simpatizantes realizaram um falso funeral em Parliament Hill, Ottawa, lamentando “a morte das evidências”. Seus cartazes diziam: “Nenhuma ciência, nenhuma evidência, nenhuma verdade”.

Mas a verdade se difunde de qualquer maneira. O fato da busca usual de lucros e crescimento estar desestabilizando a vida na Terra já não é algo que temos de ler em revistas científicas. Os primeiros sinais estão se revelando diante dos nossos olhos. E um número crescente de nós está respondendo adequadamente: bloqueando o fracking em Balcombe, interferindo nos preparativos de perfuração em águas russas do Ártico (a um custo pessoal enorme), levando operadores de areias betuminosas ao tribunal pela violação da soberania indígena e inúmeros outros atos de resistência grandes e pequenos. No modelo de computador de Brad Werner, este é o “atrito” necessário para desacelerar as forças de desestabilização. O grande o ativista do clima Bill McKibben chama estas forças de “anticorpos” se levantando para lutar contra a febre induzida do planeta.

Não é uma revolução, mas é um começo. E talvez possa nos comprar tempo suficiente para descobrir uma maneira de viver neste planeta menos f***do.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sobre neoliberalismos, desenvolvimentismos e ambientalismos

Polêmica recente entre Dilma e Marina aponta necessidade de mais governo

Marina Silva criticou a politica econômica de Dilma Roussef dizendo que seu governo abandonou o “tripé econômico” adotado desde o governo FHC. Dilma rebateu dizendo que nunca abandonou a geração de superávits primários nas contas públicas, o regime de câmbio flutuante e as metas para a inflação. Aproveitando o bate boca, o jornalista Luis Nassif publicou uma peça política muito precisa (As peças do jogo no discurso velho-novo de Marina Silva), mas que, infelizmente, quando se refere ao discurso ambientalista, segue o senso comum e descuida-se da ciência e do contexto planetário no qual a economia internacional se desenvolve.

Nassif criou um discurso utopista para o ambientalismo (“... os sonhos do silvícola sendo abastecido unicamente pela mãe natureza”) para logo contestá-lo: “É evidente que a nova utopia não responde a questões básicas: como dividir a renda, sem que ela cresça?... Inclusão significa levar energia a todos os lares. Como casar o ambientalismo radical de Marina, que só acredita na energia dos ventos e do sol, com as necessidades dos mais pobres? Como garantir empregos melhores, sem um aprimoramento da industrialização, dos serviços?”.

Nassif diz ainda que o novo discurso de Marina, que seria influenciado por André Lara Resende, cria “uma situação curiosa, que acaba juntando os grandes investidores internacionais e os ambientalistas: o discurso anti-desenvolvimento”. Longe de defender o neoliberalismo econômico e o rentismo aos quais, ainda segundo Nassif, Marina Silva está se associando para construir um discurso oposicionista, me interessa desconstruir este falso entendimento do discurso ambientalista e lembrar algumas questões centrais para o futuro da nossa economia.

A ciência ambiental, a ciência climática e muitos outros ramos do conhecimento nos confrontam com limites reais ao crescimento econômico tal qual construído desde a revolução industrial. A economia baseada no consumismo, na energia abundante e barata e na exploração ilimitada dos recursos naturais vai se esborrachar contra o muro em poucos anos. Segundo artigo recente publicado na revista Nature, o clima global apresentará características totalmente fora das encontradas historicamente já entre 2047 e 2062. Preparando-se para isto, e já respondendo a mudanças correntes nas condições climáticas, governos de vários países constroem diques contra o avanço do mar, lutam contra catástrofes naturais cada vez mais frequentes e destrutivas, tentam adaptar suas economias a secas e enchentes fortíssimas que abalam a produção de alimentos, enfim, buscam adaptar suas economias e infraestrutura à crise climática.

Desde 1989 cientistas de todo o mundo têm dado a receita de enfrentamento desta que é a principal crise global: reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa, o que se pode fazer, principalmente, por meio da redução do consumo global de petróleo, carvão e outros combustíveis fósseis.

Sucessivos governos brasileiros têm se posicionado claramente em relação ao assunto afirmando que a responsabilidade sobre as mudanças climáticas é comum a todos os países, mas diferenciada entre estes, na medida em que os industrializados têm contribuição acumulada maior para o problema. O governo Lula foi além e apresentou em 2009 em Copenhagen compromissos voluntários com metas de redução da emissão nacional destes gases para o ano 2020. Com isto Lula foi anti-desenvolvimentista?

Sem entrar na discussão da qualidade das metas apresentadas por Lula, seu governo anteviu o que nem Nassif nem Dilma conseguem ver: que o contexto econômico global criado pelas questões ambientais globais e seus desdobramentos correntes sobre a economia têm forte impacto também no Brasil, ao mesmo tempo em que apresentam grandes oportunidades para o país. Com suas grandes áreas disponíveis para a produção agrícola, suas fontes de energia renovável e programas de biocombustível, seu aço e alumínio de baixo conteúdo de carbono, seu enorme potencial de geração de energia pelo sol e pelo vento e sua gigantesca biodiversidade o Brasil tem condições de ser uma potência econômico-ambiental sem precedentes e sem concorrência internacional. Para o Brasil não há - ou há pouca - limitação ambiental ao crescimento necessário à suplantação da etapa de país de renda média de modo a levar sua população à inclusão econômica e social.

Parodiando cartazes das jornadas de junho, faltam-nos governos “padrão Fifa”. Para lembrar somente alguns dos problemas econômico-ambientais que temos e não foram enfrentados pelos anos de governo neoliberal nem pelos governos desenvolvimentistas recentes:
- falhamos em dar continuidade aos programas de etanol e biodiesel, mesmo tendo a maior eficiência global na produção destes produtos;
- deixamos praticamente toda a produção de soja brasileira se contaminar com sementes transgênicas contrabandeadas da Argentina, desprezando um possível valor de produto “prêmium” para, pelo menos, parte da nossa produção;
- exportamos a maior parte da soja que produzimos ainda em grão, perdendo a possibilidade de agregar valor pelo esmagamento e produção de proteína, óleo e outros derivados (esta oportunidade nem a Argentina deixou passar);
- destruímos parte importante da Amazônia sem termos um projeto estratégico para a região e sem termos conseguido desenvolver econômica e socialmente grande parte da população da região;
- deixamos correr solta a exploração ilegal de madeiras de qualidade superior na Amazônia sem termos conseguido criar uma cultura florestal e uma indústria de base florestal para a região;
- exportamos a granel grande parte dos minérios consumidos pelo mundo sem conseguirmos desenvolver indústrias relevantes de bens de consumo que empregam estes materiais e têm maior valor agregado;
- construímos cidades insustentáveis e desagradáveis e que oferecem péssima qualidade de vida para a maioria da nossa população.

O enfrentamento disto tudo precisa incorporar o discurso ambientalista, que não é necessariamente anti-desenvolvimentista, mas pró-desenvolvimento com governança adequada. Para superarmos os problemas listados (e muitos outros não listados) acima, precisamos de discursos que unam desenvolvimentismo, ambientalismo e um muito grande apetite de governo.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Árvores da Amazônia

Estudo publicado na Science calcula que a Amazônia abriga 390 bilhões de árvores de 16 mil espécies. O mais interessante é que 227 destas espécies foram classificadas como "hiperdominantes": 1,4% do total de espécies é responsável por metade de todas as árvores na Amazônia. No outro extremo, as 11.000 espécies mais raras representam apenas 0,12% do total de indivíduos. Um número desproporcional destas hiperdominantes são palmáceas, myristicaceae (ex: virola) e Lecythidaceae (ex: castanheira do pará, sapucaia, jequitibá, matamatá).

http://www.sciencemag.org/content/342/6156/1243092.abstract#aff-2

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Sobre a lacuna na pesquisa em energia e a crise climática

(Andrew C. Revkin – Dot Earth)

1) Energia importa: a energia pode produzir suprimentos abundantes de água potável, permite a produção, armazenamento e distribuição de alimentos, a mobilidade, a conectividade, a saúde e o conforto.

2) Mesmo com a popularização de tecnologias e métodos de conservação de energia, um mundo que terá 9 bilhões de pessoas em busca de uma vida decente exigirá muito mais do recurso do que as fontes e os sistemas atuais podem proporcionar. E já existe uma escassez enorme de energia no planeta, com cerca de dois bilhões de pessoas sem o simples benefício da iluminação ou de uma fonte limpa de calor para cozinhar suas refeições.

3) Se países como China e Índia seguirem o padrão americano de transporte, o crescimento a jato resultante da demanda por petróleo está fadado a ser uma influência perturbadora nos assuntos mundiais, mesmo se não considerarmos o impacto climático de todas as emissões adicionais de gases de efeito estufa. Pense: os EUA, com 307 milhões (indo para 400 milhões) de pessoas, consome cerca de 20 milhões de barris por dia; a Índia, com mais de 1,1 bilhão de pessoas, por sua economia andar ainda em primeira marcha, consome 2,67 milhões de barris de petróleo por dia, enquanto as projeções apontam para um vasto aumento na demanda; adicione as projeções de uso de automóveis na China e você verá por que as escolhas correntes de combustível não se sustentam.

4) Se (parte da) a humanidade permanecer presa ao degrau-carvão da "escada de calor" de Loren Eiseley por outra geração, jogará com o risco inaceitável na direção de mudanças disruptivas de longa duração no clima por meio do acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera.

5) No entanto, se eu tivesse que escolher um entre os dois adesivos para o carro – CRISE CLIMÁTICA ou PESQUISA ENERGÉTICA – eu escolheria o segundo. Isso não significa que rejeite a ideia de que estamos diante de uma crise climática. Eu só não acho que essa frase é uma maneira produtiva de enquadrar o desafio, particularmente como definido nos últimos anos no acalorado debate político. A definição que eu escolheria é muito parecida com a feita por Richard Somerville, da Universidade da Califórnia em San Diego, durante um debate sobre o clima há vários anos: "O aquecimento global não é uma crise". Aqui está um pouco do que ele disse: para entendermos a frase “o aquecimento global não é uma crise”, devemos saber o que significa crise. A palavra não significa catástrofe ou alarmismo, mas um momento crucial ou decisivo, um ponto de mutação, um estado de coisas no qual uma mudança decisiva para melhor ou pior é iminente. Nós estamos falando sobre o futuro aqui. O mundo inteiro agora realmente tem uma escolha crítica a fazer entre continuar no atual caminho adicionando mais e mais dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa à atmosfera ou encontrar algum outro. Estamos falando do futuro e a ciência diz-nos que o caminho que escolhermos irá determinar que tipo de Terra nossos filhos e netos herdarão.

6) O mundo não está remotamente engajado em pesquisar as fontes de energia que seriam necessárias para preencher as lacunas definidas acima. Estou falando de uma busca contínua, da tomada de luz da casa à sala de reuniões, do laboratório à sala de aula, da cidade inteligente pós-industrial americana à luta (literalmente) impotente das aldeias subsaarianas. Esta não é uma tarefa onerosa, mas uma afirmação ativa e positiva de que as formas como geramos e usamos energia – um ativo há tempos tido como garantido e precificado de forma a mascarar os seus custos mais amplos – realmente importam. Lugares secos fazem isso com a água o tempo todo. Em Israel não há banheiro sem duas opções de descarga. Não é um conceito verdolengo, é apenas a maneira como as coisas são feitas.

Você já deve ter ouvido falar muito sobre uma revolução energética tardia que envolve uma explosão (temporária) de gastos em legislações de incentivo. Mas esta é construída a partir de uma base miserável de investimento público e privado na arena energética, na qual avanços realmente poderiam expandir o cardápio de fontes de energia necessárias para sustentar um Planeta saudável e uma humanidade próspera, mesmo em seus estirões de crescimento. Não estou dizendo que o investimento sustentado na investigação científica é remotamente suficiente, por si só, para conduzir uma transformação energética. Mas vejo os níveis de investimento em tais pesquisas como um proxy do nosso interesse geral na questão.

Basta olhar o gráfico demonstrativo de meio século de investimento norte americano em pesquisa científica básica (abaixo). Você pode ver a corrida espacial (amarelo) e a paixão pela investigação médica (azul). A banda verde, que representa quase todas as pesquisas em energia, tem a aparência de uma cobra que engoliu uma bola de softball durante a crise do petróleo.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Carros, poluição e desatinos da política pública

Na semana passada os professores Paulo Saldiva e Evangelina Vormittag mostraram que uma redução de 10% na poluição da Região Metropolitana de São Paulo entre 2.000 e 2.020 poderia evitar 114 mil mortes, 118 mil visitas de crianças e jovens a consultórios, 103 mil a prontos-socorros por doenças respiratórias, 817 mil ataques de asma, 50 mil de bronquite aguda e crônica e 2,5 milhões de ausências ao trabalho.

Como 90% da poluição do ar nesta região vem de veículos, a prioridade zero deveria combinar a redução do uso de automóveis, o uso de combustíveis limpos em ônibus e veículos de carga e a expansão do metrô, certo?

Mas o ministro Fernando Pimentel (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) comemorou o anúncio da nova fábrica da Mercedes Benz como um novo sucesso do Inovar-Auto, programa do governo federal que incentiva a fabricação de automóveis com desoneração do IPI em até 30% para empresas do ramo automobilístico que estimulam a inovação, pesquisa e desenvolvimento no país, dando uma assombrosa mostra de como as politicas fiscal, econômica e industrial seguem perseguindo uma visão do século passado.

Para quem quer saber mais sobre a pesquisa do Saldiva transcrevo abaixo um ótimo resumo do jornalista Washington Novaes.

NÃO É SÓ A MOBILIDADE: QUE FAREMOS COM A POLUIÇÃO?
Washington Novaes - O Estado de S. Paulo – 27/09/2013

Nas recentes discussões sobre "mobilidade urbana", custo dos congestionamentos para o usuário em tempo e horas de trabalho, baixo investimento em transporte de massa - todas exacerbadas pela onda de protestos nas ruas -, tem merecido pouca atenção o tema do impacto da poluição do ar (agravado por todas essas causas) na saúde da população e no número de mortes, principalmente nas metrópoles. E foi essa exatamente a discussão sobre a "Avaliação do impacto da poluição atmosférica sob a visão da saúde no Estado de São Paulo", promovida no início da semana na Câmara Municipal de São Paulo, com base em pesquisa desenvolvida pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade, coordenada pelos professores Paulo Saldiva e Evangelina A. Vormittag, ambos doutores em Patologia, com a participação de mais cinco pesquisadores.

É um trabalho sobre o qual deveriam debruçar-se os administradores públicos da cidade de São Paulo, de sua região metropolitana e de cada uma das cidades paulistas, tantas são as informações que podem orientar seu trabalho. A começar pela conclusão de que, se houvesse uma redução de 10% nos poluentes na capital entre 2000 e 2020, poderiam ser evitados nada menos que 114 mil mortes, 118 mil visitas de crianças e jovens a consultórios, 103 mil a prontos-socorros (por causa de doenças respiratórias), 817 mil ataques de asma, 50 mil de bronquite aguda e crônica, além da perda de atividades em 7 milhões de dias e 2,5 milhões de ausências ao trabalho. Em apenas um ano (2011) a poluição da atmosfera contribuiu para 17,4 mil mortes no Estado.

Ainda é tempo de refletir e mudar, pois, diz a pesquisa, o tráfego e a poluição explicam 15% dos casos de enfarte na cidade de São Paulo. Quem acha que o adensamento habitacional em certas áreas pode aumentar a mobilidade deve prestar atenção a esse mesmo estudo: "O aumento do tráfego em 4 mil veículos/dia numa via até a 100 metros da residência mostrou ser um fator de risco para o desenvolvimento de câncer de pulmão". E tudo isso embora os programas de controle da poluição do ar por automóveis, implantados a partir da década de 1990, tenham levado a uma redução de 95%, assim como a 85% na de caminhões. Até os cinco primeiros anos desta década, a diminuição de 40% na concentração de poluentes evitou 50 mil mortes e gastos de R$ 4,5 bilhões com saúde - além da redução no consumo de combustíveis e na emissão de poluentes.

Mas, apesar das evidências, ainda prevalece, aqui e no mundo, uma situação dramática. A cada ano, em uma década, 2 milhões de pessoas morreram vitimadas pela poluição do ar em todos os continentes - uma década antes foram 800 mil. E, segundo os pesquisadores, a poluição do ar "deve se tornar a principal causa ambiental de mortalidade prematura". Com a preocupação adicional, para nós, de que as médias anuais de poluição em todas as estações paulistas onde se coletam dados estiveram, em todos os anos, em 20 a 25 microgramas por metro cúbico de ar, acima do padrão de 10 microgramas por metro cúbico de ar, que é o da Organização Mundial da Saúde. Em São Paulo, o índice é de 22,17 microgramas. E a poluição não é só de material particulado, mas também de ozônio.

Com frequência o noticiário informa que na Região Metropolitana de São Paulo um terço dos veículos não passa por inspeção - e são exatamente os mais antigos, mais poluidores. Mesmo assim, a implantação do controle na capital reduziu em 28% as emissões de material particulado. Se fosse estendida a toda a área metropolitana, poderia evitar 1.560 mortes e 4 mil internações, além de levar a uma redução de R$ 212 milhões nos gastos públicos. Outro dado impressionante da pesquisa: se todos os ônibus a diesel usassem etanol, seria possível reduzir em 4.588 o número de internações e em 745 o número anual de mortes por doenças geradas/agravadas pela poluição. E o sistema de metrô reduz em R$ 10,75 bilhões anuais os gastos com a poluição.
Já passou da hora de implantarmos sistema semelhante ao da Suécia, onde é limitado o número de anos (20) em que um veículo pode ser usado, para não agravar a poluição. Por isso mesmo o comprador de um carro novo já paga uma taxa de reciclagem; e o respectivo certificado passa de proprietário em proprietário; o último, ao final de duas décadas, pode receber a taxa de volta.

Também não há como fugir à questão: que se vai fazer, em matéria de mobilidade e poluição, se continuamos a estimular, com isenção de impostos e outros benefícios, o aumento da frota de veículos (hoje, no País todo, mais de 3 milhões de veículos novos a cada ano)? Eles respondem por 40% das emissões totais, enquanto ao processo industrial cabem 10%. E os veículos respondem por 17,4 mil mortes anuais nas regiões metropolitanas paulistas - 7.932 na de São Paulo e 4.655, só na capital. Ou seja, a cada seis anos morre uma população equivalente à de uma cidade de 100 mil pessoas em consequência da poluição.

O professor Ricardo Abramovay, da USP, lembra (Folha de S.Paulo, 13/7) que nossas emissões do setor de transporte devem dobrar até 2025, como prevê a Agência Internacional de Energia. E o professor Paulo Saldiva afirma, em entrevista ao site EcoD, que "a poluição em São Paulo é um tumor maligno". Apesar de tudo, o patologista - um dos coordenadores da pesquisa discutida esta semana - considera-se "otimista, porque ninguém muda para melhor ou repensa seus hábitos se não tiver algum tipo de problema antes (...). As doenças costumam fazer as pessoas saírem da zona de conforto. Como estamos insatisfeitos, talvez estejamos criando as bases para melhorar a cidade". E o problema central, sob esse ângulo - acentua ele -, não é o da mobilidade, pois, "se a frota de carros elétricos correspondesse a 100% da existente, melhoraria a questão da poluição, mas não a da mobilidade".

Oxalá a realidade das pesquisas faça governantes e governados se moverem de forma mais adequada.