quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Como a ciência está nos convocando à revolta



(O artigo é da Naomi Klein (No Logo) publicado no New Statesman em 29/10/2013. Eu traduzi. A foto é do Mario Schemberg. Os físicos vão saber porque foi adicionada aqui. Se estivesse vivo estaria nas ruas.)

Em dezembro de 2012 o pesquisador de sistemas complexos Brad Werner, de cabelos rosa, fez o seu caminho através da multidão de 24 mil cientistas da Terra e do Espaço no Encontro de Outono da União Geofísica Americana, realizado anualmente em San Francisco. A conferência daquele ano tinha participantes de renome como Ed Pedra, do projeto Voyager (Nasa), expondo um novo marco no caminho ao espaço interestelar, e o cineasta James Cameron, discutindo suas aventuras em submersíveis de profundidade.

Mas era a sessão de Werner que estava criando barulho; era intitulada “A Terra está F***da?” (Is Earth F**ked? Dynamical Futility of Global Environmental Management and Possibilities for Sustainability via Direct Action Activism).

Em pé na frente da sala de conferência, o geofísico da Universidade da Califórnia em San Diego guiou a multidão através do modelo computacional avançado que usara para responder à pergunta. Falou das fronteiras do sistema, de perturbações, dissipação, atratores, bifurcações e um monte de coisas em grande parte incompreensíveis para aqueles de nós não iniciados na teoria de sistemas complexos. Mas o resultado foi claro o suficiente: o capitalismo global fez da depleção de recursos algo tão rápido, prático, conveniente e sem barreiras que os “sistemas Terra-Humanidade” estão se tornando perigosamente instáveis. Ao ser pressionado por um jornalista por uma resposta clara sobre “estarmos f***dos?”, Werner deixou o jargão de lado e respondeu: “Mais ou menos”.

Há uma dinâmica no modelo, no entanto, que oferece alguma esperança. Werner classificou-a de “resistência”: movimentos de “pessoas ou grupos de pessoas” que “adotam um determinado conjunto de dinâmicas que não cabem dentro da cultura capitalista”. De acordo com o resumo de sua apresentação, isso inclui “ação direta ambiental e a resistência a partir de fora da cultura dominante, como em protestos, bloqueios e sabotagens por povos indígenas, operários, anarquistas e outros grupos ativistas”.

Reuniões científicas sérias geralmente não incluem chamadas das massas à resistência política e, muito menos, à ação direta e à sabotagem. Mas Werner não exatamente clamava por isto. Ele apenas observava que levantes massivos – como o abolicionista, o movimento pelos direitos civis ou o Occupy Wall Street – são a mais provável força de atrito capaz de desacelerar a máquina econômica que está fora de controle. Sabemos que os movimentos sociais do passado “tiveram enorme influência sobre... como a cultura dominante evoluiu”, ressaltou. Então, é lógico que, “se nós estamos pensando sobre o futuro da Terra, e o futuro de nossa união com o meio ambiente, temos que incluir a resistência como parte dessa dinâmica”. E isso, Werner argumentou, não é uma questão de opinião, mas “realmente um problema de geofísica”.

Muitos cientistas têm sido motivados pelos resultados de suas pesquisas a agir nas ruas. Físicos, astrônomos, médicos e biólogos têm estado na vanguarda dos movimentos contra armas e energia nuclear, guerra, contaminação química e criacionismo. E em novembro de 2012, a Nature publicou um comentário do financista e filantropo ambiental Jeremy Grantham incitando cientistas a aderirem a esta tradição e “serem presos se for necessário”, porque a crise climática “não é apenas a crise das suas vidas – é também a crise de existência da nossa espécie”.

Alguns cientistas não necessitam convencimento. O padrinho da ciência do clima moderna, James Hansen, é um ativista formidável, tendo sido preso meia dúzia de vezes por permanecer no topo de montanhas de carvão resistindo à remoção ou em frente à construção de gasodutos de gás de xisto (ele deixou seu trabalho na Nasa este ano, em parte, para ter mais tempo para o ativismo). Dois anos atrás, um dos 166 que foram algemados no lado de fora da Casa Branca em uma manifestação contra o gasoduto Keystone XL, foi o glaciologista Jason Box, um especialista de renome mundial no derretimento do gelo que recobre a Groenlândia. “Eu não conseguiria manter minha autoestima se não fosse”, disse Box na ocasião, acrescentando que “só votar não parece ser o suficiente neste caso. Preciso ser um cidadão também”.

Isso é louvável, mas o que Werner está fazendo com sua modelagem é diferente. Ele não está dizendo que sua pesquisa o levou a tomar medidas para parar uma determinada política, mas que sua pesquisa mostra que todo o nosso paradigma econômico é uma ameaça à estabilidade ecológica. E, de fato, que desafiar este paradigma econômico – por meio de movimentos de massa e de contrapressão – é o melhor que a humanidade pode fazer para evitar a catástrofe.

Isso é pesado. Mas ele não está sozinho. Werner faz parte de um grupo pequeno, mas cada vez mais influente, de cientistas cujas pesquisas sobre a desestabilização dos sistemas naturais – particularmente do sistema climático – os está levando a conclusões igualmente transformadoras, revolucionárias até. E para qualquer revolucionário que ainda não saiu do armário e que jamais sonhou em derrubar a atual ordem econômica em favor de outra um pouco menos propensa a levar aposentados italianos a acorrentarem-se em suas casas para evitar perde-las, este trabalho deve ser de particular interesse. Porque ele faz com que a transformação deste sistema cruel em favor de algo novo (e talvez, com muito trabalho, melhor) não é mais uma questão de preferência ideológica, mas sim uma necessidade existencial da espécie.

Uma liderança deste grupo de novos cientistas revolucionários é Kevin Anderson, um dos principais especialistas em clima da Grã-Bretanha e vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Research, grupo que rapidamente se estabeleceu como uma das principais instituições de pesquisa climática do Reino Unido. Dirigindo-se a todos, do Department for International Development à Câmara Municipal de Manchester, Anderson passou mais de uma década pacientemente traduzindo as implicações da ciência climática para políticos, economistas e ativistas. Em linguagem clara e compreensível, ele estabeleceu um rigoroso mapa do caminho para a redução de emissões, que fornece uma possibilidade decente para a manutenção da elevação da temperatura global em menos de 2°C, uma meta definida pela maioria dos governos do mundo para que seja evitada uma catástrofe climática.

Mas nos últimos anos os trabalhos e palestras de Anderson tornaram-se mais alarmantes. Sob títulos como “Mudanças climáticas: indo além do perigoso... números brutais e tênue esperança” ele afirma que as chances de permanecermos dentro de níveis de temperatura seguros estão diminuindo rapidamente.

Com sua colega Alice Arcos, uma especialista em mitigação das mudanças climáticas do Centro Tyndall, Anderson mostra que perdemos tanto tempo com protelações e políticas climáticas frágeis – enquanto o consumo global (e as emissões) inflavam – que estamos agora frente à necessidade de cortes tão drásticos que chegam a desafiar a lógica econômica de priorização do crescimento do PIB acima de tudo.

Anderson e Bows informam-nos que a meta de mitigação frequentemente citada para o longo prazo – corte de 80% das emissões de 1990 até 2050 – foi selecionada puramente por razões de conveniência política e "não tem base científica". Isso porque os impactos do clima não vêm apenas do que emitimos hoje e amanhã, mas das emissões cumulativas que permanecem na atmosfera ao longo do tempo. Eles alertam que, ao perseguirmos metas para três décadas e meia– e não o que podemos fazer para reduzir brusca e imediatamente as emissões de carbono – corremos sério risco de permitir contínuos aumentos de emissões nos próximos anos e de consumir fatia grande demais do nosso “orçamento de carbono de 2°C”, colocando-nos, assim, em uma posição impossível no final do século.

É por isso que Anderson e Bows argumentam que, se os governos dos países desenvolvidos quiserem seriamente alcançar a meta já acordada de manutenção do aquecimento global abaixo dos 2°C, e se é para respeitar alguma equidade nas reduções de emissão (basicamente: que os países que têm vomitado carbono durante a maior parte dos últimos dois séculos cortem antes dos países que ainda têm mais de um bilhão de pessoas sem energia elétrica), então as reduções precisam ser muito mais profundas, e precisam vir muito mais cedo.

Mesmo para termos 50% de chance de permanecermos dentro dos 2°C de aquecimento (temperatura que já envolve enfrentar uma série de impactos climáticos extremamente prejudiciais), os países industrializados precisam começar a cortar suas emissões de gases de efeito estufa em algo parecido a 10% ao ano – e precisam começar agora. Mas Anderson e Bows vão mais longe, apontando que este objetivo não pode ser satisfeito com a variedade de ações como a colocação de uma taxa modesta sobre o carbono emitido ou adoção das tecnologias verdes geralmente defendidas por grandes grupos ambientais. Estas medidas ajudarão, com certeza, mas simplesmente não serão suficientes: a queda de 10% nas emissões, ano após ano, é praticamente sem precedentes desde que começamos a alimentar as nossas economias com carvão. Na verdade, cortes acima de 1% ao ano “têm sido historicamente associados à recessão econômica ou à agitação”, como afirmou o economista Nicholas Stern em seu relatório de 2006 para o governo britânico.

Mesmo no período que se seguiu ao colapso da União Soviética reduções de emissões desta monta e duração não aconteceram (os países ex-soviéticos experimentaram reduções médias anuais de cerca de 5% ao longo de um período de dez anos). Também não aconteceram depois da queda de Wall Street de 2008 (países ricos experimentaram uma queda de 7% em suas emissões de CO2 entre 2008 e 2009, mas estas recuperaram-se com entusiasmo em 2010, enquanto as emissões na China e Índia continuaram a subir). Foi só no rescaldo do grande crash de 1929 que os EUA viram quedas de emissão durante vários anos consecutivos em mais de 10% ao ano, de acordo com dados históricos do Carbon Dioxide Information Analysis Centre. Mas esta foi a pior crise econômica dos tempos modernos.

Se quisermos evitar esse tipo de carnificina e atender às metas de emissões baseadas na ciência, a redução de carbono deve ser administrada cuidadosamente através do que Anderson e Bows descrevem como “estratégias de decrescimento radicais e imediatas nos EUA, na UE e em outros países ricos”. O que é aceitável, só que temos um sistema econômico que faz do crescimento do PIB um fetiche independente de consequências humanas ou ecológicas, e no qual uma classe política neoliberal abdicou absolutamente da sua responsabilidade em gerir qualquer coisa (já que o mercado é o gênio invisível ao qual tudo deve ser confiado).

Então, o que Anderson e Bows realmente estão dizendo é que ainda há tempo para evitar um aquecimento catastrófico, mas não dentro das regras do capitalismo como estas estão atualmente construídas. O que pode ser o melhor argumento que já tivemos para mudar estas regras.

Em um ensaio de 2012 publicado na influente revista científica Nature Climate Change, Anderson e Bows fizeram um tipo de desafio e acusaram muitos de seus colegas cientistas de não apresentarem honestamente o tipo de mudança que as mudanças climáticas demandam da humanidade. Por isso vale a pena citar a dupla extensamente:

“... no desenvolvimento de cenários de emissões os cientistas, repetida e severamente, subestimam as implicações de suas análises. Quando se fala de evitar um aumento de 2°C, “impossível” é traduzido para “difícil, mas factível”, enquanto que “urgente e radical” aparece como “desafiador” – tudo para apaziguar o deus da economia (ou, mais precisamente, das finanças). Por exemplo, para evitar a ultrapassagem de taxas máximas de redução de emissões ditadas por economistas, picos iniciais impossíveis de redução nas emissões são assumidos, juntamente com noções ingênuas sobre “grande engenharia” e taxas de implantação de infraestrutura de baixo carbono. E mais perturbador, como os orçamentos de emissão diminuem, mais e mais geoengenharia é proposta de modo a garantir que o ditado pelos economistas continue inquestionado. Em outras palavras, a fim de parecer razoável dentro dos círculos econômicos neoliberais, os cientistas foram dramaticamente atenuando as implicações de suas pesquisas. Em agosto de 2013, Anderson estava disposto a ser ainda mais contundente, escrevendo que não havia mais como navegar o barco na mudança gradual. “Talvez no momento da Cúpula da Terra em 1992, ou mesmo na virada do milênio, os níveis de mitigação exigidos para os 2°C de aquecimento máximo poderiam ter sido alcançados por meio de mudanças evolutivas significativas dentro da hegemonia política e econômica. Mas a mudança climática é uma questão cumulativa! Agora, em 2013, nós das nações (pós-) industrializadas de alta emissão enfrentamos uma perspectiva muito diferente. Nossa contínua e coletiva libertinagem com o carbono desperdiçou toda e qualquer oportunidade de “mudança evolutiva” que tenha sido oferecida pelo inicial e maior orçamento de carbono de 2°C que tínhamos. Hoje, após duas décadas de blefes e mentiras, o que nos resta de orçamento de carbono para os 2°C requer mudança revolucionária da hegemonia política e econômica”.

Nós não deveríamos estar surpresos por alguns cientistas climáticos estarem um pouco assustados com as implicações radicais da sua própria investigação. A maioria deles foi discretamente fazendo seu trabalho medindo amostras de gelo, rodando modelos climáticos globais e estudando a acidificação do oceano, apenas para descobrir, como o especialista em clima australiano Clive Hamilton diz, que “foram desestabilizar involuntariamente a ordem política e social”.

Mas há muitas pessoas que estão bem conscientes da natureza revolucionária da ciência do clima. É por isso que alguns dos governos que decidiram enterrar seus compromissos climáticos em favor de desenterrar mais carbono tiveram que encontrar maneiras cada vez mais brutais para silenciar e intimidar os cientistas de suas nações. Na Grã-Bretanha, esta estratégia está se tornando mais evidente com Ian Boyd, o conselheiro científico chefe do Departamento de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais, escrevendo recentemente que os cientistas devem evitar “sugerir que políticas públicas são certas ou erradas” e devem expressar suas opiniões “trabalhando com assessores de governo, e sendo a voz da razão, em vez de dissidência, na arena pública”.

Se você quer saber onde isso leva, confira o que está acontecendo no Canadá, onde moro. O governo conservador de Stephen Harper tem feito um trabalho tão eficaz no sentido de silenciar cientistas e fechar projetos de pesquisa importantes que, em julho de 2012, alguns milhares de cientistas e simpatizantes realizaram um falso funeral em Parliament Hill, Ottawa, lamentando “a morte das evidências”. Seus cartazes diziam: “Nenhuma ciência, nenhuma evidência, nenhuma verdade”.

Mas a verdade se difunde de qualquer maneira. O fato da busca usual de lucros e crescimento estar desestabilizando a vida na Terra já não é algo que temos de ler em revistas científicas. Os primeiros sinais estão se revelando diante dos nossos olhos. E um número crescente de nós está respondendo adequadamente: bloqueando o fracking em Balcombe, interferindo nos preparativos de perfuração em águas russas do Ártico (a um custo pessoal enorme), levando operadores de areias betuminosas ao tribunal pela violação da soberania indígena e inúmeros outros atos de resistência grandes e pequenos. No modelo de computador de Brad Werner, este é o “atrito” necessário para desacelerar as forças de desestabilização. O grande o ativista do clima Bill McKibben chama estas forças de “anticorpos” se levantando para lutar contra a febre induzida do planeta.

Não é uma revolução, mas é um começo. E talvez possa nos comprar tempo suficiente para descobrir uma maneira de viver neste planeta menos f***do.

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