Da América do Sul ao Sul da Ásia uma nova era de instabilidade está em pleno andamento enquanto a civilização industrial segue para a realidade pós-carbono.
(texto do Dr. Nafeez Ahmed* traduzido por Délcio Rodrigues)
Um novo fenômeno social está a caminho para surpresa daqueles que esperavam que a Primavera Árabe e os protestos da série “occupy” de alguns anos atrás fossem episódios pontuais que logo dariam lugar a uma maior estabilidade. A crença destes talvez se baseasse na esperança de que a recuperação econômica em curso retomaria os níveis de crescimento pré-crise, aliviando as queixas que alimentam as chamas do conflito civil, provocado por anos de recessão.
Mas isso não aconteceu. E não acontecerá.
Em vez disso, temos visto no pós-2008, incluindo 2013 e o início de 2014, uma persistente proliferação de distúrbios civis em escala nunca vista na história da humanidade. Somente neste início de ano tumultos iniciaram-se na Venezuela, Bósnia, Ucrânia, Islândia e Tailândia.
Isso não é coincidência. Os protestos são obviamente enraizados em forças econômicas regressivas comuns e que operam em todos os continentes do planeta, mas essas forças não são mais que sintomas de um processo ainda mais profundo e prolongado ligado ao fracasso do sistema econômico global em transitar da velha era industrial dos combustíveis fósseis e sujos para alguma outra coisa.
Mesmo antes da Primavera Árabe eclodir na Tunísia em dezembro de 2010, os analistas do New England Complex Systems Institute alertaram para o perigo de distúrbios civis impulsionado pela escalada dos preços dos alimentos. Se o Índice de Preços dos alimentos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) subisse acima de 210, alertou o Instituto, distúrbios poderiam ser desencadeados em grande parte do mundo.
Jogos Vorazes
O padrão é claro. O picos de preços dos alimentos de 2008 coincidiu com a erupção da agitação social na Tunísia, Egito, Iêmen, Somália, Camarões, Moçambique, Sudão, Haiti e Índia, entre outros.
Em 2011, o pico de preços precedeu a agitação social em todo o Oriente Médio e Norte da África - Egito, Síria, Iraque, Omã, Arábia Saudita, Bahrein, Líbia, Uganda, Mauritânia, Argélia, e assim por diante.
No ano passado, os preços dos alimentos atingiram o terceiro ano mais alto já registrado, o que correspondeu aos surtos de protestos de rua na Argentina, Brasil, Bangladesh, China, Quirguistão, Turquia e outros países.
Desde aproximadamente uma década atrás, o índice de preços de alimentos da FAO mais que dobrou, passando de 91,1 em 2000 para uma média de 209,8 em 2013. Como disse o Professor Yaneer Bar-Yam, presidente e fundador do Complex Systems Institute, a uma revista na semana passada, "Nossa análise mostra que 210 no índice FAO é o ponto de ebulição e temos raspado este valor nos últimos 18 meses... Em alguns casos, a ligação é mais explícita, enquanto que em outros, uma vez que estamos no ponto de ebulição, qualquer coisa pode desencadear protestos".
Mas a análise das causas da crise alimentar global de Bar-Yam não vão fundo o suficiente - ele se concentra no impacto do uso da terra pela produção de biocombustíveis e na especulação financeira sobre produtos alimentares. Mas esses fatores apenas arranham a superfície.
É o gás
Os casos recentes não ilustram apenas uma ligação explícita entre a agitação civil e um sistema global de alimentos cada vez mais volátil, mas também apontam a raiz do problema da crescente insustentabilidade do nosso vício civilizacional crônico aos combustíveis fósseis.
Na Ucrânia, os choques anteriores de preços dos alimentos tiveram impacto negativo sobre as exportações de grãos do país, contribuindo particularmente para a intensificação da pobreza urbana. A aceleração dos níveis de inflação é subestimada nas estatísticas oficiais - os ucranianos gastam em média 75% de suas receitas nas contas de casa, e mais da metade destes em alimentos e bebidas não alcoólicas. Da mesma forma, na maior parte do ano passado, a Venezuela sofreu de uma escassez de alimentos motivada por má gestão política do recorde de inflação dos últimos 17 anos, impulsionado principalmente pelo aumento dos preços dos alimentos.
Enquanto a dependência da importação de alimentos cada vez mais caros desempenha seu papel, no núcleo de ambos os países uma crise energética se aprofunda. A Ucrânia é um importador líquido de energia que teve seu pico de produção de petróleo e gás no longínquo 1976. Apesar da excitação recente sobre o potencial de gás de xisto doméstico, a produção de petróleo da Ucrânia diminuiu em mais de 60% ao longo dos últimos vinte anos devido a desafios geológicos e a escassez de investimento.
Atualmente, cerca de 80% do petróleo da Ucrânia, e 80% de seu gás, são importados da Rússia. Mais da metade do consumo de energia do país é sustentado por gás. O preço do gás natural russo quase quadruplicou desde 2004. Os preços da energia em rápido crescimento estão impulsionando as taxas de pobreza entre os ucranianos médios e exacerbando as divisões sociais, étnicas, políticas e de classe.
A recente decisão do governo ucraniano de reduzir drasticamente as importações de gás russo provavelmente vai piorar a situação já que fontes alternativas de energia mais baratas estão em falta. São magras as esperanças de que fontes domésticas de energia cheguem a salvar o país - além de que o xisto não pode resolver os combustíveis líquidos caros, e o nuclear também não pode ajudar. Um relatório que vazou do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento (EBRS) revelou que a proposta de empréstimo de 300 bilhões de Euros para renovação da envelhecida infraestrutura de 15 reatores nucleares estatais gradualmente dobrará os já debilitantes preços da eletricidade até 2020.
Socialismo ou “Soci-óleo-ismo”?
Na Venezuela a história é familiar. O Oil and Gas Journal relata as reservas de petróleo do país em 99,4 bilhões de barris antes de 2011. Neste ano estas foram revistas para a gigantesca quantia de 211 bilhões de barris de reservas provadas e, mais recentemente a US Geological Survey, dos EUA, divulgou a nova e colossal reserva de 513 bilhões de barris. O grande impulso veio da descoberta de reservas de petróleo extrapesado na região do Orinoco.
Os enormes custos de produção e refino deste óleo pesado, em comparação com o mais barato petróleo convencional, no entanto, fizeram com que as novas descobertas contribuíssem pouco para os desafios energéticos e econômicos da Venezuela. A produção de petróleo do país atingiu seu pico por volta de 1999 e diminuiu em um quarto desde então. Já a produção de gás atingiu o pico por volta de 2001 e desde aquele ano diminuiu em cerca de um terço.
Ao mesmo tempo, o consumo nacional de petróleo tem aumentado constantemente (quase duplicou desde 1990) comendo cada vez mais da produção em declínio. O resultado é que a exportação líquida de petróleo despencou para quase a metade desde 1996. Como o petróleo representa 95% das receitas de exportação e perto da metade das receitas orçamentárias do país, este declínio reduziu maciçamente o sustento dos programas sociais do governo, incluindo subsídios críticos.
Pandemia iminente?
Estas condições locais estão sendo exacerbadas pelas realidade global. Os preços recordes de alimentos incidem sobre as condições locais e empurram os países para a borda do abismo. Mas o aumento dos preços dos alimentos, por sua vez, são sintomas de uma série de problemas que se sobrepõem. A excessiva dependência da agricultura global aos insumos fósseis significa que os preços dos alimentos estão invariavelmente ligados a picos de preços do petróleo. Naturalmente, os biocombustíveis e a especulação sobre os alimentos empurram ainda mais os preços para cima – somente a elite do sistema financeiro se beneficia da situação, enquanto trabalhadores de média e baixa renda suportam o peso.
Obviamente o elefante na sala é a mudança climática. Segundo a mídia japonesa, um relatório que vazou do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC) advertiu que enquanto a demanda por alimentos vai aumentar em 14% a produção global de lavouras vai cair em 2% por década, devido aos níveis atuais de aquecimento global, e causar US$ 1,45 trilhões em perdas econômicas até o fim do século (este cenário é baseado em um aumento projetado de 2,5 graus Celsius na temperatura média global).
Esta é provavelmente uma estimativa conservadora. Considerando que a trajetória da agricultura industrial já está observando estabilizações nos rendimentos das principais regiões agrícolas, a interação das crises ambiental, energética e econômica sugere que a trajetória contumaz de crescimento da produção não deve continuar.
A epidemia mundial de protestos é sintoma da falência do sistema global - um sistema que sobreviveu ao fim de sua utilidade. É necessário um novo paradigma.
Infelizmente, simplesmente tomar as ruas não é resposta. É necessária uma visão estratégica para a transição civilizacional – suportada pelo poder das populações e por consistência ética.
É hora dos governos, empresas e populações acordarem para o fato de estarmos entrando rapidamente em uma nova era pós-carbono, e quanto mais rápido nos adaptarmos a ela, melhores serão nossas chances de redefinir com sucesso uma nova forma de civilização - uma nova forma de prosperidade - que seja capaz de viver em harmonia com o sistema planetário.
Se continuarmos a enterrar nossas cabeças na areia como as avestruzes, só teremos a nós mesmos para culpar quando a epidemia tornar-se uma pandemia e bater em nossa porta.
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* O Dr Nafeez Ahmed é diretor executivo do Institute for Policy Research & Development e autor de A User's Guide to the Crisis of Civilisation: And How to Save It entre outros livros.
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