quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Crateras misteriosas são apenas o começo das surpresas do Ártico

Pesquisadores repensam observações de mais de um século enquanto testemunham os perigos inesperados e peculiares que surgem com o descongelamento do permafrost, o solo congelado do Ártico.
Por David Biello para a Scientific American, 05/08/2014; tradução de Délcio Rodrigues.


Árvores bêbadas: árvores se inclinam conforme permafrost descongela

Não são somente as crateras supostamente abertas por alienígenas na Rússia, mas também as megadepressões que aparecem repentinamente, o gelo que queima e as árvores bêbadas. O colapso em curso do solo permanentemente congelado que recobre quase um quarto das terras do hemisfério norte tem causado uma série de fenômenos surpreendentes no Ártico.

As temperaturas em todo o Ártico estão aumentando mais ou menos duas vezes mais rápido que no resto do mundo, em grande parte devido à redução da quantidade de luz solar refletida pelo solo branco coberto de neve. “Em algum momento, podemos entrar num estado do permafrost não comparável ao que aprendemos em 100 anos de observação, caracterizado por alguns processos que nunca aconteceram antes”, diz o geólogo Guido Grosse do Instituto Alfred Wegener para Pesquisa Polar e Marinha da Alemanha.

As misteriosas crateras do extremo norte da Rússia são apenas um exemplo. “Não há nada descrito na literatura científica que pode realmente, totalmente, explicar essas crateras”, diz Grosse, que está neste verão do hemisfério Norte no Delta do Rio Lena, na Sibéria, local que abriga uma estação de pesquisa conjunta russo-alemã. A explicação mais provável para as crateras recém-descobertas na Rússia é um acúmulo de metano ao longo de séculos ou mais, que, em seguida, explodiu para fora do solo descongelado em algum momento dos últimos anos. “A alta pressão acumulada fez o solo, literalmente, explodir”, explica o biogeoquímico Kevin Schaefer do US National Snow and Ice Data Center. “Se isto foi realmente causado pelo derretimento do gelo de metano, ainda devemos esperar mais para comprovar”.

Estas crateras se transformarão em lagos, que descongelarão ainda mais o permafrost ao redor e no fundo, como armadilhas de água que reterão mais calor do sol. Novos lagos similares estão se formando em depressões da paisagem irregular recém-descongelada em todo o Ártico, apelidada de termocarste. Esses lagos e pântanos que cercam o termocarste criam condições lamacentas que favorecem o desenvolvimento de colônias de micróbios que se alimentam do material vegetal morto e enterrado, gerando metano no processo. Este metano borbulha para fora dos lagos e do solo e, quando concentrado, pode até mesmo se inflamar, gerando os casos relatados de chamas que dançam sobre o gelo.

Ainda mais comuns que as crateras de explosão ou as chamas sobre o gelo são as árvores bêbadas. Quando o permafrost derrete, o solo que antes era tão sólido como concreto torna-se lama, devido ao fato do solo de algumas regiões do Ártico ser composto por até 80 por cento de gelo. E dado que o gelo ocupa mais espaço do que a água, o volume do solo diminui, fazendo com que as árvores que cresciam em posição vertical se inclinem. Como resultado, florestas inteiras têm sido descritas como exércitos de bêbados. Esta é também uma má notícia para a moderna infraestrutura do Ártico: estradas, oleodutos e fundações de edifícios afundam na lama ou racham enquanto paisagens inteiras se rebaixam. “No longo prazo, haverá impactos econômicos e sociais enormes causados pela degradação do permafrost”, observa Schaefer.

Onde há declives no solo tudo pode ser ainda pior: deslizamentos lentos de lama podem destruir pouco a pouco áreas de 40 hectares ou mais e se estenderem por mais de um quilômetro. Os maiores deslizamentos deste tipo podem destruir a paisagem a taxas de um quilômetro por década e não parecem mostrar sinais de estabilização. “Um deslizamento na Rússia, que tem chamado a atenção de cientistas, se estende por mais de 70 metros de profundidade no permafrost e continua crescendo mesmo tendo começado nos anos 1970”, diz Grosse.

Talvez a maior preocupação gerada pelo degelo do permafrost é a liberação maciça e repentina de metano do oceano e do permafrost Ártico. O metano aprisiona pelo menos oito vezes mais calor do que o dióxido de carbono ao longo de décadas, levando a um aquecimento global ainda mais rápido. A má notícia frente a este verdadeiro arroto do solo do planeta é o aumento medido na quantidade de metano produzido no Ártico - cerca de 8 por cento na Estação de Alerta dos Territórios do Noroeste do Canadá. E expedições oceânicas têm observado borbulhas provenientes do gelo de metano existente no fundo do Oceano Ártico. A boa notícia é que dados de satélite que abrangem amplas porções do Ártico e que remontam já há décadas mostram pouca mudança na concentração atmosférica deste gás de efeito estufa. “Não sabemos ainda o porquê”, diz Grosse.

A maior parte dos gases de efeito estufa liberados pelo degelo do Ártico será composta de CO2. E o degelo do permafrost continuará armazenando cada vez mais calor com o aumento dos níveis de gases de efeito estufa na atmosfera, dando início a um ciclo de realimentação positiva que, em seguida, derreterá ainda mais o Ártico. Para meados do século, simulações de computador preveem que um terço da área de permafrost do Alasca pode descongelar, pelo menos na superfície, e o mesmo pode ocorrer no Canadá e na Sibéria. Uma vez que o degelo tenha se iniciado - e as plantas mortas e congeladas que compõem os três primeiros metros ou mais do permafrost tornem-se alimentos para os micróbios que liberam CO2 - o processo é irreversível. “Você não pode voltar a congelar”, diz Schaefer. “Uma vez que o processo começa, você não pode mais desligá-lo, e ele persistirá por séculos”.

O permafrost acumula vastas quantidades de carbono, cerca de 1,7 trilhões de toneladas de acordo com estimativas, ou mais do que o dobro do que hoje se encontra na atmosfera. Nem tudo vai descongelar no futuro próximo - algumas áreas de permafrost se estendem até 700 metros de profundidade -, mas cerca de 120 bilhões de toneladas podem ser liberadas até o fim deste século. O que seria suficiente para elevar as temperaturas médias globais em cerca de um terço de um grau Celsius. “Estes são grandes números”, Schaefer observa. Mas “são comparativamente pequenos frente aos projetados para a queima de carvão, petróleo e gás natural. Essas emissões são, em resumo, imensas”.

Os modelos de computador que produzem estas estimativas de quanto do carbono pode sublimar assumem como hipótese o degelo progressivo do permafrost. Essa hipótese pode se revelar errada, se nos pensarmos nas observações feitas até o momento. Os processos de descongelamento, como deslizamentos e lagos, estão acontecendo mais rápido e afetando regiões maiores do que o esperado. Como Grosse coloca: “podemos estar sendo muito conservadores em nossas estimativas”.

O descongelamento coloca em marcha um conjunto complexo de forças naturais, algumas das quais poderiam contrariar a tendência de aquecimento aparentemente inexorável. Árvores e arbustos continuarão a se mover para o norte, graças a temperaturas maiores e a estações de crescimento mais longas. Essas árvores, por sua vez sugarão CO2 do ar. O novo Observatório Orbital de Carbono da NASA deve ajudar a esclarecer quanto CO2 este processo de esverdeamento do Ártico vai sugar da atmosfera. E mesmo os lagos termocársticos podem armazenar algo de carbono no subsolo, pelo menos ao longo de milhares de anos, como sedimentos lacustres enterram plantas mortas e algas.

Mesmo o descongelamento inescapável devido aos gases de efeito estufa ja emitidos permanece obscuro. “Estamos tentando descobrir isso”, diz Schaefer. E as próprias regras que têm regido os processos Árticos durante os últimos 100 anos ou mais de exploração moderna podem não mais serem válidas. A velocidade desta crise em curso pode se acelerar e acontecer em décadas ou refrear fazendo o descongelamento acontecer ao longo de séculos e milênios. “Quais são os limites do degelo do permafrost?” pergunta Grosse. “Nós realmente não sabemos”.

Há tentativas de expandir o monitoramento do Ártico, mas enormes lacunas persistem por causa de sua vasta extensão e condições adversas. Como na maioria das ciências, as observações até o momento são limitadas a locais onde os cientistas podem chegar com facilidade, ao invés de locais que assegurariam a máxima cobertura do monitoramento. Das questões de pesquisa que emergem em torno do Ártico no Antropoceno - esta nova época geológica definida pelos impactos humanos sobre o planeta - o destino do permafrost se agiganta como um desconhecido conhecido, como a Academia Nacional de Ciências reconheceu em um relatório de abril passado.

Uma coisa é clara, no entanto: o Antropoceno se mostrou até agora hostil ao gelo, o que deve piorar à medida que um novo Ártico emerge. “Esta é uma situação sem precedentes”, diz Schaefer. “Quanto mais rápido se queima combustíveis fósseis, mais rápido o Ártico vai se aquecer”.

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