Artigo de Marlowe Hood* traduzido para o português por Délcio Rodrigues
PARIS (22/09/2014) Levei mais de dois anos embalando e etiquetando o insight surgido da meia década de cobertura de pandemias de gripe, partículas subatômicas furtivas e derretimentos de camadas de gelo. E tenho que agradecer a Godzilla (e, também, a um crítico de cinema) o momento de iluminação que colocou tudo em foco.
Apesar da longa gestação, senti o despertar do canto de cisne antes mesmo de um estalar de dedos: era um terço ciência, um terço saúde... e 100% mudança climática. Pelo menos essa é a maneira como senti quando experimentei o que o filósofo australiano e estudioso do clima Clive Hamilton - autor, notável, de "Réquiem para uma espécie” (que vem a ser a nossa) - chama de “momento caraca!”, quando todo o peso da calamidade que ameaça engolir violentamente nosso planeta se choca com nossa relutância instintiva em contemplar o final dos tempos.
Para mim, cético por natureza e formação, a trovoada veio enquanto conversava com um grupo de cientistas proeminentes ao qual tinha sido solicitado, para uma conferência de Oxford em 2009, que imaginasse um mundo com a atmosfera aquecida em 4oC. O que emergiu foi um quadro indescritível de miséria desoladora: guerras pela água, centenas de milhões de refugiados do clima, vetores de doenças galopantes, fome no atacado (o cenário de 4oC de aquecimento é hoje considerado como uma projeção "intermediária" para o final do século XXI).
Mas o verdadeiro choque “mijo-nas-calças” foi perceber que pode ser tarde demais para prender os cães do inferno. E se, em outras palavras, a distopia climática não for uma advertência fantasiosa, mas uma realidade produzida para a qual a humanidade está caminhando rapidamente em alegre abandono? Na verdade, o que faz os cientistas climáticos perderem o sono – e eu vi um deles explodir em lágrimas durante sua fala – é a possibilidade mensurável de termos estragado irrevogavelmente o termostato do planeta e colocado em movimento forças naturais que, em um relativo piscar de olhos, farão da Terra um lugar bem menos hospitaleiro para a nossa surpreendida espécie.
Do que eu estou falando? Recentemente soubemos, por exemplo, que o gigantesco Manto de Gelo da Antártida Ocidental ultrapassou um “ponto de não retorno” a partir do qual seu derretimento acelerado - desencadeado principalmente pelo aquecimento da água do oceano – se tornou o motor de sua própria morte, tanto causa como efeito. Isso significa que, mesmo que conseguíssemos zerar todas as emissões humanas de CO2 amanhã, mesmo assim, o Manto diminuirá até desaparecer, elevando o nível do mar em vários metros. Bye-bye Bangladesh e todos os demais megadeltas e seres humanos que nestes vivem e mal se alimentam do que neles plantam. Olá tempestades que farão Sandy parecer uma maré alta um pouco mais ventosa (haverá alguma justiça climática: a Flórida passará de pau grosso a lápis fino e todo o imprudente desenvolvimento costeiro será apagado). Se isso vai acontecer em um século ou três realmente não importa - ainda não haverá tempo suficiente para nos adaptarmos.
E isso é apenas um dos vários cataclismos autoengrenados prestes a derrubar o equilíbrio físico-químico que hoje os cientistas chamam de Sistema Terra. Outro é a grande reserva de carbono – equivalente a várias vezes todo o CO2 lançado até agora à atmosfera durante a era industrial - enterrada, principalmente na forma de metano, no que é equivocadamente chamado de ‘permafrost’ da Sibéria e do Canadá. As temperaturas subárcticas, que vêm aumentando duas vezes mais rápido que a média global, já começaram a liberar este tesouro tóxico enterrado, e – a partir de um certo ponto – não haverá maneira de parar o processo.
A parte assustadora é que podemos já ter ultrapassado este ponto sem saber disso.
Existe uma chance de que essas coisas não venham a acontecer? Claro. Há também uma chance de o Sol implodir antes que eu termine de digitar esta frase (Ufa! Essa foi por pouco). É tudo uma questão de calcular as probabilidades, a forma pela qual os cientistas falam sobre o futuro. Mas se você realmente ler os estudos e ouvir os especialistas, o prognóstico é realmente sombrio, sinistro como as imagens do Ceifador Sinistro, figura normalmente associada à morte.
Agora mesmo você deve estar se perguntando: “Se as coisas são assim tão ruins, por que eu já não sei disso?”
Talvez você saiba. Talvez você tenha ouvido a notícia... mas não estava realmente ouvindo. O instinto de sobrevivência reage instantaneamente quando enfrentamos um rinoceronte ou um drogado com uma pistola na mão. Mas, paradoxalmente, os seres humanos têm uma tendência comprovada a ignorar ameaças mortais que não requerem atenção imediata, por exemplo, um cataclismo climático. Longe dos olhos, longe do coração (quanto a isto, tanto Freud quanto os psicólogos evolucionistas concordam). Conviver com o apocalipse, afinal de contas, é por si só um “meme” para a loucura (lembre-se da imagem do barbudo solitário com um cartaz pendurado no pescoço dizendo "o final está próximo”).
Mas nem tudo é culpa sua. As pessoas que conhecem os fatos - ONGs ambientalistas, grandes poluidores, cientistas do clima - não estão dispostas, cada grupo por suas próprias razões, a tocar os sinos de alarme do nível DEFCON 1 (Nota do tradutor: DEFCON, ou ‘defense readiness condition’, é uma escala de alarme usada pelas forças armadas dos EUA; o nível 1, ou DEFCOM 1, é o mais rigoroso da escala e significa que uma guerra nuclear é iminente).
Os ambientalistas ainda estão se recuperando do fracasso espetacular que tiveram em 2009 quando marcaram a Cúpula do Clima de Copenhague como a “última chance”. Ficaram esgotados e perdidos, e desde aquele momento têm medo de soarem estridentes. Chame isso de síndrome do galinho Chicken Little.
Os que lucram com o carbono, é claro, tem toda a razão para minimizar a ameaça. E eles têm cinicamente gasto montes de dinheiro fazendo exatamente isso, sussurrando em nossos ouvidos que o risco é duvidoso e distante, enquanto o custo de agir agora seria ruinoso. E, mesmo quando o peso das evidências força os mais intransigentes céticos a admitir que a mudança climática é uma clara - e atual - ameaça, eles saem dizendo: “Agora é tarde demais, melhor nos prepararmos para o inevitável”. Foi quando o “Big Oil & Friends” veio a público propor soluções técnicas fantasiosas – como colocar um bilhão de minúsculos espelhos em órbita no espaço próximo, semear os oceanos com limalha de ferro ou estocar CO2 em cofres geológicos – para garantir o “business-as-usual”.
Finalmente, os cientistas são prejudicados pelos códigos e cultura de sua profissão. Tanto previsões quanto prescrições de políticas públicas os tornam enjoados. “Este não é meu trabalho” - já ouvi isso uma centena de vezes (A mídia, por sua vez, tornou as coisas piores, fabricando incertezas, adoramos uma corrida de cavalos. Quanto aos políticos, basta lembrar que eles não são eleitos pelas gerações futuras).
A revista científica Nature publicou uma figura que mostra os "limites planetários" para nove equilíbrios químico-biológicos distintos que, juntos, ajudam a compor o Sistema da Terra. Segundo os cientistas, a humanidade já está fora do "espaço seguro de operação" de pelo menos três destes: a mudança climática, o ciclo do nitrogênio e a perda de biodiversidade.
Mas há uma outra força - e é aí que entra Godzilla - que também nos impede de ver nosso futuro como uma mistura de “World War Z”, “O Dia Depois de Amanhã” e “Contágio”. Em uma palavra: a arrogância.
No original japonês de 1954, o pisoteador de cidades “Gojira” é um filho mutante e radiativo do nosso recente domínio sobre as partículas elementares. A fissão atômica prometeu armas capazes de acabar com as guerras e energia ilimitada, mas a relação custo/benefício da era atômica acabou por ser muito menos vantajosa do que a anunciada. Sessenta anos depois, sugere o crítico de cinema Andrew O'Hehir, Godzilla está de volta para nos lembrar mais uma vez que a tentativa de conquistar a natureza pode ter terríveis e inesperadas consequências.
Arrogância em escala global
A noção de que nossa espécie pode e deve moldar a Terra à sua própria vontade é na verdade completamente nova. Ela surgiu com o Iluminismo e floresceu juntamente à revolução industrial, reforçada pela certeza de que a Ciência, a Tecnologia e a Educação quebrariam as correntes históricas de ascensão e declínio e impulsionariam a humanidade ao longo de uma espiral sempre crescente de interminável progresso. Para os pensadores do século 19 de todos os tipos – de Marx a Mill, de socialistas a darwinistas sociais – a inata engenhosidade e superioridade humana impulsionaria a transformação enquanto a natureza proveria uma quantidade inesgotável de matérias primas.
Na antiga tragédia grega, a arrogância - um coquetel de orgulho e excesso de confiança – condena o protagonista voluntarioso a um fim prematuro. Mas a nossa tragédia moderna está sendo encenada em um palco maior, e o personagem central é, sem dúvida, a própria humanidade.
O culto do Progresso, com 'P' maiúsculo, seguiu em grande parte sem contestação até meados da segunda metade do século 20. Mas, então, sinais de alerta começaram a aparecer em todo lugar. Hoje, os sinais de alerta se transformaram em ameaças existenciais: a nova era de extinção em massa, apenas a sexta em 500 milhões anos; um flagelo de doenças não mais intimidadas pelos antibióticos que uma vez pensamos iriam destruí-las; buracos gigantes no tecido da nossa estratosfera; um crescendo de secas, incêndios, inundações e tempestades; oceanos subindo e morrendo simultaneamente.
Pela primeira vez em 4,57 bilhões de anos de história do nosso planeta, uma única espécie não só alterou a morfologia, a química e a biologia da Terra, mas está ciente de ter feito isso. A ruptura é tão radical que muitos cientistas concordam com a ideia de que nossas ações inauguraram uma era geológica distinta. Como disse Erle Ellis, da Universidade de Maryland: “Nós não sabemos o que vai acontecer no Antropoceno (era dos seres humanos). Pode ser bom, ou até melhor. Mas precisamos pensar de forma diferente e globalmente, para tomar posse do planeta”.
“Apropriar-se do planeta”. A arrogância de nossa espécie tem sido dupla. Em primeiro lugar, nós imaginamos que poderíamos trazer a Terra de joelhos a serviço das nossas necessidades e desejos. E então, quando confrontados com evidências de que estamos envenenando a família, bem, nós persistimos em acreditar que podemos inventar uma nova fonte de água.
Mesmo o grito de guerra dos ecoguerreiros, já velho de décadas, trai uma arrogância descabida. Quando os ambientalistas exigem a salvação do planeta, o que eles realmente querem dizer é “Salve nossa Espécie”. O planeta não precisa de salvamento, nós sim. Se os seres humanos realmente fizerem naufragar a complexa teia de interações químicas e biológicas que atualmente sustenta a vida, a Terra vai encontrar um novo equilíbrio, como sempre fez. Para nossa espécie, por outro lado, a transição pode ser rude demais.
Pense nisso desta maneira: Deus(es) não pode(m) ser indiferente(s) ao seu sofrimento, mas a natureza o é. Só arrogância nos impede de perceber que a Terra pode chacoalhar-nos para fora como um parasita irritante, permitindo a alguma outra forma de vida tomar o nosso lugar.
---
* Marlowe Hood foi correspondente da AFP na cobertura de ciência, saúde e meio ambiente de 2007 a 2012 e publicou este artigo em http://blogs.afp.com/correspondent/?post/Ice-sheets%2C-Godzilla-and-hubris.
Nenhum comentário:
Postar um comentário