sexta-feira, 19 de abril de 2013

Por que não conseguimos parar de queimar combustíveis fósseis?

Traduzi este artigo de Duncan Clark porque é dos melhores resumos que já vi sobre o maior dilema atual da humanidade: deixar ou não debaixo da terra a energia fóssil que tanto nos fez progredir, mas que ameaça acabar com a civilização?
O artigo é baseado no livro The Burning Question de Mike Berners-Lee e Duncan Clark, da Profile Books.


POR QUE NÃO CONSEGUIMOS PARAR DE QUEIMAR COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS?
Apesar do impulso à tecnologia limpa da última década continuamos a extrair e queimar combustíveis fósseis mais do que nunca.
Por Duncan Clark para o The Guardian (17/04/2013)

Nós temos muito mais petróleo, carvão e gás do que podemos queimar com segurança. Para além de todos os milhões de palavras escritas sobre a mudança climática, o desafio realmente se resume a isto: o combustível fóssil é extremamente útil, maciçamente valioso e extremamente importante geopoliticamente, mas combater o aquecimento global significa deixar a maior parte dele no chão - por opção. Embora ouçamos cada vez mais sobre promover a tecnologia verde, reduzir os níveis de consumo ou baixar a taxa de crescimento da população, deixar o combustível fóssil no solo é o cerne da questão. Afinal, o clima não sabe ou se importa quanto de energia renovável ou nuclear temos, quão eficientes nossos são nossos carros e casas, quantas pessoas existem, ou até mesmo como funciona nossa economia. Ele só se importa com quanto gás de efeito estufa bombeamos - e isto é, curiosamente, imune às ações que geralmente pensamos serem positivas.

Há três fatos que dizem tudo o que você realmente precisa saber sobre a ciência do clima e a política. Primeiro: apesar de toda a incerteza sobre os detalhes, todas as academias de ciência do mundo aceitam a visão dominante de que o aquecimento global está sendo produzido pelo homem. Segundo: praticamente todos os governos, reconhecendo o perigo real de adulteração do clima atual que permitiu à humanidade prosperar, concordaram que o mundo deve limitar o aumento da temperatura global a 2oC - um nível que não é seguro sob qualquer ponto de vista, mas que pode ser suficiente para evitar os piores impactos. Terceiro: a quantidade de aquecimento que vamos experimentar cresce de maneira mais ou menos proporcional à quantidade total de carbono que a sociedade global emite - cumulativamente.

Aqui está o busílis. Mesmo que deixemos para lá os obscuros e pouco convencionais recursos fósseis pelos quais as empresas hoje estão gastando bilhões para tentar acessar, a queima apenas da quantidade comprovadamente existente e economicamente viável de petróleo, carvão e gás emitiria quase 3 trilhões de toneladas de dióxido de carbono - o CO2. Ninguém pode dizer exatamente quanto de aquecimento isto possa causar, mas é muitíssimo provável que ultrapassaríamos 2oC, indo a 3oC ou até mesmo a 4oC de aquecimento.

Quatro graus pode não parecer muito, mas em nível planetário é. É quase o mesmo que o aumento de temperatura observado desde "último máximo glacial" da idade do gelo, quando grande parte do hemisfério norte ficou sob uma camada de gelo tão espessa como cinco dos arranha-céus mais altos do mundo empilhados em cima uns dos outros. É impossível dizer quais outras mudanças mais três ou quatro graus trariam, mas os impactos poderia muito bem incluir um colapso na produção global de alimentos, secas e inundações catastróficas, ondas de calor e o início do derretimento do manto de gelo que poderia, eventualmente, elevar o nível do mar o suficiente para acabar com muitas das grandes cidades do mundo.

Os céticos argumentam que esse cenário apocalíptico pode não acontecer - e eles estão certos. Se tivermos sorte, o impacto da queima de todo esse petróleo, carvão e gás pode ficar no lado menos grave do espectro de possibilidades. Mas isso é pouco reconfortante: é quase o mesmo que dizer que é tranquilo andar com os olhos vendados em uma auto estrada, já que você não pode ter certeza se passam carros por ali naquele momento. Com o aquecimento de menos de 1oC na temperatura do Planeta que presenciamos até agora, já estamos vendo algumas mudanças profundas, incluindo um colapso na cobertura de gelo do mar Ártico mais grave até do que as previsões mais pessimistas de poucos anos atrás.

Dado o que está em jogo, não é de admirar que os governos concordem que o aquecimento global deve ser interrompido. Mas é aí que o senso comum termina e começa a dissonância cognitiva. Porque, para termos uma boa chance de não excedermos a meta global (que já é arriscada), precisamos começar a eliminar gradualmente desde já os combustíveis fósseis em um ritmo rápido o suficiente capaz de reduzir as emissões globais em alguns pontos percentuais por ano, e continuar a fazê-lo pelas próximas décadas.

Agora compare isso com o que está realmente acontecendo. Tal como acontece com o clima, para entender a situação corretamente é necessário olhar mais de longe a tendência de longo prazo. Se o fizermos, se revela algo fascinante, preocupante e estranhamente esquecido. Como os cientistas da Universidade de Lancaster apontaram no ano passado, se você traçar um gráfico de todas as emissões de carbono que os seres humanos vêm bombeando para a atmosfera, o resultado é uma curva exponencial notavelmente clara que se estende desde a metade do século 19 até hoje. Observando de perto a última década fica claro que toda a preocupação científica, toda a retórica política e a toda a tecnologia limpa fizeram diferença na tendência global de longo prazo. A taxa de crescimento das emissões totais de carbono da década passada, mais ou menos 2% ao ano, foi a mesma que a da década de 1850.

Isso pode parecer difícil de acreditar. Afinal, graças a políticas e tecnologias verdes, as emissões vêm caindo na Europa, nos EUA e em muitos outros países. As turbinas de vento e os painéis solares são cada vez mais comuns, não só no ocidente, mas têm rápido crescimento também na China. E a eficiência energética dos automóveis, lâmpadas, casas e de economias inteiras tem melhorado globalmente por décadas. Então, porque a curva de crescimento do carbono não nos dá trégua? Alguns podem instintivamente querer culpar o crescimento da população, mas as curvas não se comparam. A taxa de crescimento da população caiu como uma pedra desde 1960 e não é mais exponencial, mas a curva de carbono não parece ter notado o Protocolo de Quioto ou que você foi trabalhar de bicicleta esta manhã. Por alguma razão, cortar o carbono até agora tem sido como apertar um balão de gás: ganhos obtidos em um lugar têm sido anulados por aumentos em outros.

Para entender o que está acontecendo de errado, é necessário considerar a natureza do crescimento exponencial. Este tipo de tendência de aceleração é renitente quando existe uma retroalimentação positiva no sistema. Por exemplo, uma dívida de cartão de crédito cresce exponencialmente porque os juros são calculados sobre uma base cumulativa. O número de algas em um frasco cresce da mesma forma: enquanto houver comida e ar haverá mais algas e estas poderão se reproduzir mais. O fato de que as nossas emissões de carbono têm seguido a mesma tendência de aceleração sugere que o uso de energia é impulsionado por um tipo similar de retroalimentação que está cancelando os aparentes ganhos verdes.

Isso certamente se encaixa com a história. A revolução industrial que marcou o início do impacto humano sobre o clima foi impulsionada por exatamente por um mecanismo de retroalimentação como este. O motor a vapor permitiu drenar minas de carvão, dando assim acesso a mais carvão que poderia fornecer energia para mais motores a vapor capazes de extrair ainda mais carvão. Isso levou a melhores tecnologias e materiais que eventualmente ajudaram a aumentar a produção de petróleo também. Mas o petróleo não deslocou o carvão e sim nos ajudou a minerar carvão de maneira mais eficaz e estimulou mais tecnologias que elevaram a demanda de energia global. Assim, o uso do carvão continuou subindo também - e uso do óleo, por sua vez, continuou a aumentar enquanto o gás natural, as energias nuclear e hidrelétrica entraram em operação, ajudando a impulsionar a era digital, o que por sua vez disparou tecnologias mais avançadas capazes de identificar reservas de combustíveis fósseis mais difíceis de serem encontradas.

Visto como uma retroalimentação comandada pela tecnologia, não é de estranhar que nada tenha ainda domado a curva global de emissões, porque até agora nada cortou seu suprimento de alimento: os combustíveis fósseis. De fato, embora os governos agora subsidiem fontes de energia limpa, carros e edifícios eficientes - e encorajem todos nós a usar menos energia - eles continuam a minar todos estes esforços por meio da extração de tanto petróleo, carvão e gás quanto possível. E se as políticas verdes acabarem com o mercado para os combustíveis fósseis em casa, não importa: estes podem ser exportados.

Este extraordinário duplo padrão está à vista de todos e em qualquer lugar. Pegue os EUA. Obama se gaba de que as emissões norte-americanas estão caindo devido ao aumento dos padrões de eficiência dos automóveis e da entrada do gás que desloca o carvão sujo do mix energético. Mas os EUA estão extraindo carvão e colocando-o no sistema global de energia mais rápido do que nunca. Seu boom do gás simplesmente lhe permitiu exportar mais carvão do que nunca para outros países como a China - que, naturalmente, usam-no em parte para produzir bens de consumo para os mercados norte-americanos. Não satisfeito em aumentar a extração de carvão nos EUA, Obama também deverá aprovar o gasoduto Keystone XL, que permitirá ao Canadá inundar os mercados globais com óleo cru produzido a partir das sujas areias de Xisto. Tanto mais carbono para ser cortado.

Ou tome a Austrália, que, no mesmo ano introduziu um imposto sobre o carbono e começou a discutir planos para uma série de "mega-minas" que aumentariam massivamente suas exportações de carvão, ajudando a construir confiança entre as empresas e governos que planejam construir nada menos que 1.200 novas termelétricas a carvão ao redor do mundo. Mesmo o Reino Unido, com suas metas de redução de carbono líderes no mundo, dá incentivos fiscais para incentivar a exploração de petróleo e gás e tem feito crescer sua pegada de carbono por depender cada vez mais das fábricas chinesas e, portanto, indiretamente, do carvão americano e australiano. E não apenas isso. Embora raramente isto seja comentado, o reino unido juntamente com outras nações supostamente verdes, como Alemanha, pede regularmente à Arábia Saudita e a outros países da Opep para produzir não menos óleo, mas mais. Como o jornalista George Monbiot mostrou certa vez, as nações estão tentando, simultaneamente, "reduzir a demanda e aumentar a oferta de combustíveis fósseis".

Não são apenas os governos que estão em negação quase universal do que precisa acontecer com os combustíveis fósseis. Ignorando alegremente o fato de que já há muito mais combustível acessível do que pode ser queimado de forma segura, os gestores de fundos de pensão e outros investidores estão permitindo que empresas de combustíveis fósseis gastem US$ 1 trilhão ao ano (algo comparável ao orçamento de defesa dos EUA, ou mais de US$ 100 para cada pessoa no planeta) para encontrar e desenvolver ainda mais reservas.

Se e quando esta insanidade for questionada, a bolha de carbono vai estourar e esses investimentos passarão a ser tão tóxicos como as hipotecas sub-prime. E não se baseie em minha opinião: os analistas do HSBC recentemente concluíram que gigantes do petróleo como a BP - empresa amada pelos fundos de pensão do Reino Unido - poderiam ter seu valor reduzido à metade se o mundo decidir combater as mudanças climáticas. Por sua vez, as empresas de carvão podem esperar um tombo ainda maior. E nossos reguladores financeiros ainda lhes permitem operar nos mercados de ações sem mencionar nos seus prospectos que partes de seus ativos podem ser rebaixados em breve.

Mas, por enquanto, o combustível fóssil continua fluindo livremente. E enquanto isto continuar, a retroalimentação global provocada por esta energia fóssil vai garantir que nossas louváveis iniciativas continuem ineficazes - ou mesmo contraproducentes. Motores mais eficientes podem simplesmente permitir que mais pessoas conduzam mais carros a distâncias maiores, provocando mais construção de estradas, mais comércio e casas maiores nos subúrbios que demandarão mais energia para seu aquecimento. Novas fontes de energia renováveis ou nucleares só podem levar a mais atividade econômica, aumentando a demanda e oferta de todas as fontes de energia, o que inclui os combustíveis fósseis. E os cortes de carbono locais derivados de escolhas sustentáveis ou verdes, o declínio da população ou até mesmo novos modelos econômicos podem simplesmente liberar mais combustível para uso em outros lugares.

É claro que o uso do petróleo, do carvão e do gás se estabilizará eventualmente não importa o que fizermos. Isto porque estes recursos são finitos e a cada ano ficam mais caros em relação às energias renováveis e à nuclear. Mas, dada a contínua aceleração não apenas da extração de combustíveis fósseis, mas da produção de automóveis, caldeiras, fornos e usinas que precisam de petróleo, carvão e gás para funcionar, é zero a possibilidade de que isto aconteça por si só em breve. Esqueça o pico do petróleo causado por uma diminuição de suprimento. Pelo menos até que tenhamos uma maneira barata de capturar e estocar carbono precisaremos fazer acontecer o tal o pico de uso de combustíveis fósseis. Voluntariamente. E em breve.

Sabemos como fazê-lo. Um sistema global de limite de emissões e comércio de créditos é uma opção. Rígidos impostos sobre a produção ou a venda de combustíveis fósseis outra. Ou podemos simplesmente obrigar as empresas que retornem ao solo uma parcela crescente do que extraem. Qualquer um desses modelos poderia derrubar as emissões globais e estimular uma explosão de investimentos e inovação em sistemas de energia limpa e eficiente. Mas não há como evitar efeitos colaterais desagradáveis: uma espiral de preços de combustível e eletricidade, uma baixa de muitos trilhões de dólares no valor das reservas de combustível fóssil, e uma feroz disputa mundial pelo pouco combustível que seria possível queimar.

Como tudo isso afetaria a economia global, ou os fundos de pensão ou a saúde financeira do Oriente Médio, dos EUA e de outras nações ricas em carbono que resistem a um acordo climático global? Pelos pareceres de gente séria de ambos os lados, ninguém pode dizer com certeza, assim como ninguém pode estar certo de como a sociedade humana se sairá em um mundo em aquecimento. Mas com tanto dinheiro e poder ligado ao petróleo, ao carvão e ao gás, uma coisa parece clara: congelar os estoques globais de combustíveis fósseis demanda pensar alto, políticas duras e - isto é crucial - muita pressão pública. Cortes voluntários de carbono são um grande começo, mas não são páreo para um sistema de retroalimentação energética global.

Globalmente, a grande maioria das pessoas quer ver afastada a ameaça da mudança climática. Mas conseguiremos priorizar um planeta seguro passando por cima dos atrativos de combustíveis baratos, voos fáceis, energia abundante e bens de consumo sedutores? Conseguiremos chamar nossos líderes a acabar com o duplo-padrão de pensamento e passar a restringir petróleo, carvão e gás em nosso nome? Conseguiremos reunir a força e a cooperação necessárias para que ativos de trilhões permaneçam embaixo do solo?

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