EUA apela a outros países que respeitem os mesmos tratados que viola
George Monbiot; The Guardian; 09/09/2013
É quase possível ter pena dessa gente. Ao longo de 67 anos vários e sucessivos governos dos EUA resistiram aos apelos pela reforma do Conselho de Segurança da ONU defendendo um sistema que concede a somente cinco países o poder de veto sobre a política mundial enquanto reduz todos os outros a espectadores impotentes. Estes países têm abusado dos poderes e da confiança com que foram investidos. Os EUA tem mantido com os outros quatro membros permanentes (Grã-Bretanha, Rússia, China e França) uma divisão colonial, por meio da qual estas nações podem perseguir seus próprios interesses corruptos em detrimento da paz e da justiça global (1).
Os EUA já exerceu seu direito a veto por 83 vezes (2). Em 42 dessas ocasiões o fez para evitar que Israel fosse censurado pelo tratamento dado aos palestinos (3). Na última ocasião, 130 países apoiaram a resolução, mas Obama a detonou (4). Apesar do poder de veto ter sido utilizado com menos frequência desde o colapso da União Soviética em 1991, os EUA o exerceu por 14 vezes desde então (em 13 casos para proteger Israel), enquanto a Rússia o usou nove vezes (5). Cada vez mais os membros permanentes têm usado a ameaça do veto para impedir a discussão de resoluções. Eles têm intimidado o resto do mundo ao silêncio.
Através deste poder tirânico - criado num momento em que outras nações estavam alquebradas ou sem voz - os grandes senhores da guerra dos últimos 60 anos continuam a ser responsáveis pela paz mundial. Os maiores comerciantes de armas detêm a tarefa do desarmamento global. Aqueles que pisam na lei internacional detêm a administração da justiça (6).
Mas agora, quando o poder de veto de dois membros permanentes (Rússia e China) obstrui sua tentativa de derramar gasolina sobre outro fogo do Oriente Médio, os EUA decidem repentinamente que o sistema é ilegítimo. "Se", diz Obama, "transformarmos o Conselho de Segurança da ONU não em um meio de forçar o cumprimento das normas e leis internacionais, mas sim numa barreira... então eu acho que as pessoas, com razão, vão se tornar muito céticas sobre o sistema” (7). Bem, parece verdade.
Nunca Obama, ou seus antecessores, tentou uma reforma séria do sistema. Nunca procuraram substituir uma oligarquia global corrupta por um corpo democrático. Nunca lamentaram esta injustiça - até se oporem ao resultado. O mesmo vale para todos os aspectos da governança global.
Barack Obama alertou na semana passada que o uso pela Síria de gases venenosos “ameaça reverter a norma internacional contra as armas químicas abraçada por 189 nações” (8) . Esclarecendo a norma internacional é o trabalho do presidente dos EUA.
Em 1997 os Estados Unidos concordaram em destruir em 10 anos as 31 mil toneladas de gases Sarin, VX, mostarda e outros agentes que possuía. Em 2007, solicitou a extensão máxima de prorrogação permitida pela Convenção sobre Armas Químicas: cinco anos. Mais uma vez não conseguiu manter a sua promessa (9) e em 2012 alegou que destruiria os estoques até 2021 (10). Seria a nação mais rica do mundo incapaz de concluir esta tarefa em tempo? Ou estaria apenas sem vontade? A Rússia pediu à Síria que coloque suas armas químicas sob controle internacional (11). Talvez devesse pressionar os EUA a fazerem o mesmo.
Em 1998 a administração Clinton forçou uma lei por meio do Congresso que proibia aos inspetores internacionais de armas recolherem amostras de produtos químicos nos EUA. A mesma lei permitiu ao presidente a recusa de inspeções não anunciadas (12). Em 2002, o governo Bush forçou a demissão de José Maurício Bustani, diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (13, 14). Bustani tinha cometido dois crimes imperdoáveis: buscar uma rigorosa inspeção das instalações norte-americanas e pressionar Saddam Hussein a assinar a Convenção de Armas Químicas, para ajudar a prevenir a guerra que George Bush estava louco para travar.
Os EUA usou milhões de litros de armas químicas no Vietnã, Laos e Camboja. Também as usou durante a destruição de Falluja, em 2004, e depois mentiu sobre isso (15, 16). O governo Reagan ajudou Saddam Hussein em uma guerra contra o Irã na década de 1980, mesmo consciente de que Saddam usava os gases mostarda e nervoso (17) (O governo Bush, 15 anos depois, citou estes fatos como desculpa para atacar o Iraque).
A varíola foi eliminada da população humana, mas duas nações - Estados Unidos e Rússia - insistem em manter o patógeno em câmara fria. Eles afirmam que seu objetivo é desenvolver defesas contra um possível ataque com armas biológicas, mas a maioria dos especialistas da área considera que isto é um disparate (18). Ao levantar preocupações sobre a posse da doença um do outro, eles colaboraram na ameaça aos outros membros da Organização Mundial de Saúde, que os têm pressionado a destruir seus estoques (19).
Em 2001 o New York Times relatou que, mesmo sem supervisão do Congresso ou declaração nos termos da Convenção de Armas Biológicas, “o Pentágono construiu uma fábrica de germes que poderia fazer micróbios letais suficientes para destruir cidades inteiras". (20, 21) O Pentágono alegou que o objetivo era defensivo, o que mesmo assim não parece nada bom, uma vez desenvolvido em total violação ao direito internacional. O governo Bush também procurou destruir a Convenção de Armas Biológicas como um instrumento eficaz, ao fugir das negociações sobre o protocolo de verificação necessário para fazê-lo funcionar (22).
Pairando sobre tudo isso o grande inominável: a cobertura que os EUA provê às armas de destruição em massa de Israel. Não é apenas que Israel - que se recusa a ratificar a Convenção de Armas Químicas - usou fósforo branco como arma em Gaza (quando descarregado contra pessoas, o fósforo satisfaz a definição da convenção de "qualquer produto químico que, pela sua ação química sobre os processos vitais, possa causar a morte, incapacidade temporária ou dano permanente" (23)) .
E também, como assinalado pelo Washington Post, "o estoque de armas químicas da Síria é resultado de um acordo de cavalheiros nunca reconhecido no Oriente Médio pelo qual, por Israel ter armas nucleares, a busca de armas químicas pela Síria não atrai muito reconhecimento público ou crítica.”(24) Israel desenvolveu seu arsenal nuclear desafiando o tratado de não proliferação e os EUA o apoiou desafiando sua própria lei, que proíbe desembolsos em ajuda a um país detentor de armas não autorizadas de destruição em massa (25).
Quanto às normas do direito internacional, lembremo-nos de onde os EUA se colocam. O país permanece fora da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, depois de declarar seus cidadãos imunes a ato de acusação. O crime de agressão que cometeu no Iraque - definido pelo tribunal de Nuremberg como "o supremo crime internacional" (26) - não segue apenas impune, mas também não mencionado por ninguém do governo. O mesmo se aplica à maioria dos crimes subsidiários de guerra cometidos por tropas norte-americanas durante a invasão e ocupação. Guantanamo dá de ombros para qualquer noção de justiça entre as nações.
Nada disso exime o governo de Bashar al-Assad - ou seus adversários - de uma longa série de crimes hediondos, incluindo o uso de armas químicas. Também não sugere a existência de uma resposta fácil aos horrores na Síria.
Mas o fracasso de Obama em ser honesto acerca do registro de ações do seu país para destruir as normas internacionais e minar o direito internacional, seu mito produzido sobre o papel dos EUA nos negócios globais e as suas intervenções unilaterais no Oriente Médio, tudo isto torna a crise na Síria mais difícil de resolver. Até que haja alguma sinceridade acerca dos crimes do passado e das injustiças atuais, até que haja um esforço para resolver as desigualdades sobre as quais domina, tudo que os EUA tente, mesmo que não envolva armas e bombas, vai atiçar o cinismo e a raiva que o presidente diz querer matar.
Durante seu primeiro discurso de posse, Barack Obama prometeu "deixar de lado as coisas infantis" ( 27). Todos nós sabíamos o que ele queria dizer. Ele não fez isso.
Referências:
1. See George Monbiot, 2003. The Age of Consent: A manifesto for a new world order. Harper Perennial, London.
2. http://edition.cnn.com/2013/09/03/world/united-nations-security-council-fast-facts/index.html
3. http://jewishvoiceforpeace.org/campaigns/no-more-us-vetoes-at-the-un
4. Sahar Okhovat, December 2011. The United Nations Security Council: Its Veto Power and Its Reform. CPACS Working Paper No. 15/1. http://sydney.edu.au/arts/peace_conflict/docs/working_papers/UNSC_paper.pdf
5. http://www.un.org/depts/dhl/resguide/scact_veto_en.shtml
6. http://www.un.org/en/sc/about/functions.shtml
7. http://www.whitehouse.gov/the-press-office/2013/09/06/remarks-president-obama-press-conference-g20
8. http://www.whitehouse.gov/the-press-office/2013/09/06/remarks-president-obama-press-conference-g20
9. https://www.armscontrol.org/act/2006_05/CWC2012
10. http://www.nti.org/gsn/article/pueblo-chemical-disposal-plant-85-finished/
11. http://www.theguardian.com/world/2013/sep/09/russia-syria-hand-over-chemical-weapons
12. http://www.armscontrol.org/act/2001_04/tucker
13. http://www.theguardian.com/world/2002/apr/16/iraq.comment
14. http://www.theguardian.com/politics/2002/apr/23/foreignpolicy.usa
15. http://www.theguardian.com/politics/2005/nov/15/usa.iraq
16. http://www.theguardian.com/world/2005/nov/22/usa.iraq1
17. http://www.foreignpolicy.com/articles/2013/08/25/secret_cia_files_prove_america_helped_saddam_as_he_gassed_iran
18. http://www.bbc.co.uk/news/health-13360794
19. http://www.livescience.com/14297-smallpox-decision-stocks.html
20. http://www.nytimes.com/2001/09/04/international/04BIOW.html
21. http://www.nytimes.com/2001/09/04/world/us-germ-warfare-research-pushes-treaty-limits.html
22. Edward Hammond, 21 September 2001. Averting Bioterrorism Begins with US Reforms. The Sunshine Project. http://www.greens.org/s-r/27/27-15.html
23. http://www.opcw.org/chemical-weapons-convention/articles/article-ii-definitions-and-criteria/
24. http://www.washingtonpost.com/blogs/fact-checker/post/history-lesson-when-the-united-states-looked-the-other-way-on-chemical-weapons/2013/09/04/0ec828d6-1549-11e3-961c-f22d3aaf19ab_blog.html
25. http://www.theguardian.com/world/2006/dec/13/israel
26. http://bit.ly/ORgbew
27. http://www.nytimes.com/2009/01/20/us/politics/20text-obama.html
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